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A MARINHA DE D. JOÃO III (16)
Diu: “a barlavento de toda a Índia”
Diu: “a barlavento de toda a Índia”
O
julgamento habitual que se faz da cias que tiveram no julgamento de atitudes parava para atacar os interesses portugueses
acção dos soberanos portugueses de alguns governadores. Mas o problema na Índia. E fá-lo-ia a partir de Diu, como já
na época de ouro da expansão no cresce com a subida ao poder de D. João III, acontecera em 1508-9, agora com a vantagem
Oriente prende-se, com frequência, numa porque o conceito de exercício do poder se de já conhecer melhor o poder e a maneira
análise superficial de resultados globais, torna mais centralizado ainda, obrigando a de actuar dos portugueses. Mas havia ainda
nem sempre bem interpretados. Essa pos- uma organização mais complexa do estado outra razão que se relacionava com a vanta-
tura resulta numa atribuição de rótulos de e a uma exigência de fidelidade e obediên- gem estratégica de Diu, mas tinha a ver com
justiça discutível que não resiste à minú- cia superiores. algo mais prático e concreto. O comércio da
cia da investigação históri- pimenta do Malabar, que os
ca. Uma das considerações portugueses tentaram mo-
que é frequente ouvir ou ler nopolizar de todas as formas
prende-se com a atitude po- e, sobretudo, evitar que enri-
lítica de D. João III, herdeiro quecesse as “naus de Meca”,
de um imenso império que tinha uma fuga importante
foi deixando perder a pouco pelo Guzerate. A esquadra
e pouco, com a entrega de al- da Índia não conseguia evi-
gumas das posições conquis- tar um produtivo comércio
tadas, ou lançando as semen- que tinha lugar em esconsos
tes da decadência associada lugares da costa, e era trans-
de costume – e mais uma vez portado para o norte atra-
de forma apressada – ao do- vés de verdadeiros enxames
mínio filipino. É uma posição de paraus que se refugiavam
com a qual, nos seus traços nos inúmeros baixos, logo
gerais, não estou de acordo. que surgia uma navio portu-
D. João III foi o primeiro rei guês. A pimenta assim adqui-
que efectivamente governou rida chegava a Cambaia e,
com um sentido permanente por vezes, passava ao Médio
de serviço público ou dever Oriente, apesar da vigilância
de desígnio divino, sentando- à entrada do Mar Vermelho.
-se à mesa e despachando de Deve acrescentar-se, aliás,
manhã à noite e assumindo as “Itinerário, Viagem ou Navegação de Jan Huygen Van Linschoten para as Índias Orientais que o que nos é descrito de
suas funções – como diríamos ou Portuguesas”. forma ligeira como Golfo de
hoje – de forma profissional. Ouviu e ponde- Lopo Vaz de Sampaio não iria ter perdão, Cambaia, sugerindo uma amplo espaço de
rou mais do que qualquer um e, sobretudo, mas procurou atenuar, com um crescendo acesso aos portos do reino com o mesmo
foi lúcido e realista onde outros foram ape- de feitos bélicos, o castigo que adivinhava nome, é uma zona de perigosos baixos onde
nas sonhadores. Talvez tenha sido o nosso inevitável. Beneficiou, aliás, da circunstância os acessos marítimos têm de ser feitos atra-
primeiro rei verdadeiramente moderno. da esquadra de Nuno da Cunha se ter atra- vés de canais, que é preciso conhecer, e sobre
E digo isto para poder interpretar os acon- sado na costa africana e ter perdido a mon- os quais Diu (com Damão, como se viu mais
tecimentos ocorridos com Lopo Vaz de Sam- ção de 1528. É muito provável que o avanço tarde) tem um domínio muito claro.
paio, na sequência da sua rendição no cargo de António Saldanha e a sua chegada ante- Esta situação era muito clara para D. João III
de governador da Índia e no seu regresso sob cipada a Goa, lhe tenha permitido saber de e reflectiu-se nas ordens que deu a Nuno da
prisão, que teve pesadas consequências. A informações que, de outro modo, não po- Cunha que foram sabidas de Vaz Sampaio
verdade é que Lopo Vaz de Sampaio não foi deria (tentar) aproveitar, e uma delas foi co- antes de este chegar à Índia. Por isso, ainda
um mau governador, na perspectiva em que nhecer antecipadamente a decisão régia de durante as chuvas de 1529, este se apressou
a sua acção criou benefícios significativos à construir uma praça forte em Diu, custasse a aprontar todos os navios que pôde, prepa-
posição portuguesa no Oriente e poderia ter o que custasse, missão que tinha atribuído rando-se para esperar o novo governador em
merecido perdão por isso. Em nome de um regimentalmente ao novo governador. Goa ou, caso este se atrasasse mais (chegou
certo pragmatismo era, talvez, o que faria Havia várias razões para que Portugal a pensar-se que teria morrido), avançar ele
D. Manuel. Se calhar, foi com isso mesmo quisesse construir uma fortaleza em Diu, e próprio para Diu. Esta última hipótese foi-lhe
que contou o próprio Vaz Sampaio. Mas o a mais importante de todas está expressa na vivamente desaconselhada pelos fidalgos do
problema não pode ser visto assim. Quando História do Cerco de Diu, escrita por Lopo de seu conselho e mereceu especial oposição de
assumiu o governo, por cima de uma carta Sousa Coutinho: “porque, sendo, como era, António Saldanha, a quem parecia que o ata-
de sucessão que apontava Pero de Mascare- fortíssima, e n’ella haver bom porto e vasa- que a Diu era uma incumbência/honra do
nhas, ultrapassou uma ordem do rei, ou seja douro, e ser a barlavento de toda a Índia”. governador que chegava. Enfim, com todos
afrontou a essência do poder do Príncipe Re- Tinha, portanto, condições para albergar os problemas que afectavam o futuro de Vaz
nascentista. D. João III não podia desculpá-lo uma esquadra que estaria sempre em po- Sampaio, os preparativos de uma expedição a
de nenhuma maneira, fossem quais fossem sição táctica vantajosa par atacar quaisquer Diu avançavam e continuariam, como sendo o
os seus feitos na Índia. Falei na questão do inimigos que tentassem entrar no Guzerate primeiro grande objectivo de Nuno da Cunha.
poder exercido à distância de quase dois e que circulassem ao largo do Malabar ou Disso falaremos na próxima revista.
anos de viagem, a quando dos episódios de Canará. E esta questão ganhava tanto mais Z
A Marinha de D. Manuel, imaginando os pesa- importância quanto corriam notícias da or- J. Semedo de Matos
delos que isso causava ao rei, e as consequên- ganização de uma esquadra turca que se pre- CFR FZ
REVISTA DA ARMADA U SETEMBRO/OUTUBRO 2006 13