Page 194 - Revista da Armada
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siderar um dos mais extraordinários eventos ções marítimas durante a dinastia Tang (618 a tes atingido, ao depositar o poder nas mãos de
da dinastia Ming. 907), bem como ao grande desenvolvimento oito eunucos, referidos como os “Oito Tigres”
Durante os reinados dos imperadores Yon- que, nas dinastias Song e Yuan (960 a 1368), em razão da sua ferocidade e brutalidade. Liu
gle (1402-1424) e Xuande (1425-1435), o gover- adquiriram a construção naval e a navegação, Jin, o líder deste grupo, controlava os segredos
no ordenou a organização de sucessivas expe- que terão permitido viagens ao Japão, às que do Estado e dominava os documentos e éditos
dições sob o comando de Zheng He imperiais à sua discrição. Acabou
(1371-1435), um eunuco islâmico, condenado à morte pelo soberano,
enviando-as ao sudoeste asiático e acusado de corrupção e de ter acu-
ao Oceano Índico. mulado ilegalmente uma enorme
No Verão de 1405, à testa de uma fortuna. O reinado de Zhengde foi
armada de 62 navios de grande também fértil em levantamentos de
porte, cerca de 250 de menor di- camponeses, regularmente chacina-
mensão e de um contingente ar- dos pelas tropas imperiais.
mado de mais de 28.000 homens, Quando os portugueses se esta-
Zheng He viajou até Java e Calecu- beleceram a título permanente em
te, regressando à China em 1407. O Macau, em 1557, reinava o impera-
Almirante fez-se de novo ao mar dor Jiajing (1521-1566) e a China vi-
para mais seis longas viagens até via uma profunda crise financeira,
1433, alcançando as ilhas indoné- com despesas do Estado que quase
sias, a Índia, Ormuz e a costa leste triplicavam o montante arrecada-
de África. As rotas percorridas fo- do nos impostos. O soberano era
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ram sinal de grande desenvolvi- um taoista convicto, gastando
mento da marinharia chinesa na quase metade da receita pública na
época, bem como das técnicas de construção de edifícios religiosos.
construção naval, até pela dimen- Estas circunstâncias tiveram natu-
são de alguns dos navios que em- D. Manuel I e o Almirante Zheng He presentearam o Papa Leão X (1514) e o rais reflexos sobre a situação social
Imperador Yongle (1414) com animais exóticos.
preendiam estas expedições. e o seu reinado foi perturbado por
Importa, entretanto, notar uma diferença são agora as ilhas Indonésias e Filipinas, à cos- numerosos levantamentos de camponeses,
de vulto entre as motivações por detrás das ta oriental de África e ao Golfo Pérsico. Estas mineiros, soldados e minorias étnicas.
expedições lideradas por Zheng He e as da viagens marítimas teriam servido propósitos Meio século mais tarde iniciaram-se as inva-
expansão portuguesa, que então dava os seus tanto comerciais como diplomáticos. sões manchus, oriundas da região nordeste da
primeiros passos. De facto, enquanto os eu- Também o historiador Zheng Yi Jun [24] China. De então até à queda da dinastia Ming
ropeus perseguiam objectivos comerciais e reclama para a China uma “longa tradição (1644) a China e a sua capital em particular vi-
acessoriamente, de evangelização, a China ti- da ciência náutica astronómica ”, afirman- vem períodos de particular agitação. Assistem
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nha em vista aumentar o seu catálogo de es- do que já na dinastia Han os mares do sul da à transição, chegando a ser envolvidos em al-
tados tributários, tipo de relação que parecia China e do Oceano Índico eram sulcados por guns desses episódios, os padres da Compa-
funcionar melhor quando se tratava de países navios chineses. nhia de Jesus que se instalaram entretanto em
pequenos e geografica- Pequim , onde ganharam
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mente remotos. posição através dos seus
As campanhas ter- conhecimentos científicos,
restres contra a ameaça em particular no campo
mongol terão obrigado da astronomia.
o Imperador a refrear o Não obstante as crises
investimento nas expe- atrás referidas, a dinas-
dições marítimas, em tia Ming deixou um im-
benefício da defesa das portante legado, que vai
fronteiras terrestres, agora desde as expedições ma-
sujeitas a tão séria amea- rítimas lideradas pelo al-
ça. A Marinha chinesa so- mirante Zheng He, uma
freu então cortes drásticos produção cultural de
na sua dimensão. grande importância, em
No entanto, ainda hoje especial nos domínios
são formuladas diferentes da literatura, pintura,
e complexas conjecturas caligrafia e porcelanas,
para explicar a retracção até à construção de parte
do poder marítimo chi- significativa da muralha
Cenas das cortes portuguesa e chinesa no Séc. XVI.
nês. Algumas destas ex- da China.
plicações encontram raízes em impulsos iso- Mas, na verdade, uma vez encerrado o ciclo
lacionistas, com origem em lutas entre radicais das expedições do almirante Zheng He, a His- “THE CHINA CONNECTION”:
confucionistas e o aparelho de eunucos que se tória não regista outros episódios de afirma- MALACA E A ESTRATÉGIA
ocupava da burocracia da corte [2]. ção da China como potência marítima. PORTUGUESA
As viagens das esquadras comandadas pelo Oito décadas após a retracção marítima chi-
almirante Zheng He são frequentemente refe- nesa, à data da chegada do primeiro português No século XV, o conhecimento que existia
ridas como a única experiência de maritimiza- à China (Jorge Álvares, 1513), reinava o impe- sobre a China nas praças comerciais e missio-
ção de uma potência de vocação tradicional- rador Zhengde (1505-1521), um governante nárias do Ocidente era relativo às rotas terres-
mente continental. No entanto, algumas fontes que adquiriu reputação de se dedicar mais tres então praticadas, que envolviam prolon-
chinesas [18], [24] referem viagens a países do ao prazer e a costumes dissolutos, do que aos gadas, arriscadas e dispendiosas, mas mesmo
Sudeste Asiático em período anterior à dinastia negócios do país. Zhengde terá transportado assim lucrativas expedições. A Estrada ou Rota
Han (206 AC-220 DC), a importantes expedi- o regime Ming a um nível de crise nunca an- da Seda, que adquiriu esta designação apenas
12 JUNHO 2007 U REVISTA DA ARMADA