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A MARINHA DE D. JOÃO III (24)



           O Governador Mem de Sá no Rio de Janeiro
           O Governador Mem de Sá no Rio de Janeiro


               uarte Costa foi nomeado Governa-  A nomeação de Mem de Sá, em 23 de Ju-  morte de Henrique II em 1559. Portugal con-
               dor Geral do Brasil por carta de 1 de  lho de 1556, tem como objectivo acalmar as  tou com uma situação mais favorável e com
         DMarço de 1553, dirigindo-se, de ime-  dissidências e conflitos contra Duarte Costa,  uma experiência ultramarina mais consisten-
         diato, para a Baía, onde o esperava Tomé de  mas eu creio que só no local, e em face dos  te. No momento adequado não desperdiçou
         Sousa. A entrega do poder fez-se de forma na-  perigos evidentes, o novo governador viria  a possibilidade de dar o passo ofensivo deci-
         tural, mas o novo governo viria a ser marcado  a compreender a importância do domínio do  sivo. Isso aconteceria em 1561, precisamen-
         por um constante rol de protestos que trans-  mar e, a urgência de expulsar os franceses de  te quando Villegagnon se ausentara para a
         parecem numa abundante correspondência  um ponto tão importante como era a baía de  Europa procurando os reforços necessários à
         enviada ao rei por várias entidades locais. O  Guanabara. Aliás, a sua carreira de homem de  manutenção do seu projecto.
         conflito mais grave implicaria o próprio bis-  letras, alheado de assuntos militares e até da   A 21 de Fevereiro de 1561, uma força de cer-
         po da Baía, que se queixou de agravos feitos  vida de corte, dificultam a compreensão das  ca de dez navios aproximou-se de Guanaba-
         pelo próprio e por seu filho.                                                      ra, procurando surpreender
         E, de entre todas as cartas                                                       as defesas francesas com um
         que chegaram até nós, uma                                                         desembarque nocturno. Este
         assume particular impor-                                                          objectivo inicial gorou-se mas,
         tância para um juízo sobre a                                                      com reforços vindos de S. Vi-
         forma como foram tratadas                                                         cente, a ilha e a fortificação fo-
         as questões navais, porque é                                                      ram cercadas e sujeitas a um
         escrita por Francisco de Por-                                                     intenso bombardeamento a
         tocarreiro, Capitão-Mor do                                                        que não resistiu. Acabava-se
         mar, e diz respeito ao em-                                                        assim a França Antárctica e,
         penhamento do governador                                                          sobretudo, o domínio de um
         em tão importante assunto.                                                        ponto importante encravado
         Queixa-se ele da prolifera-                                                       na costa da Província de San-
         ção de franceses “roubando                                                        ta Cruz, ameaça ao comércio
         barcos e navios”, dizendo                                                         português do Brasil e à Rota
         que pediu ao governador                                                           da Índia. Mem de Sá não ti-
         “os navios latinos que com                                                        nha meios para ocupar con-
         ele vyeram bem artilhados e                                                       venientemente o que acabara
         duas galiotas que tyrão pela                                                      de conquistar, e nem sequer
         proa [com capacidade de                                                           conseguira explorar o su-
         fogo para vante]”, mas sem                                                        cesso da primeira operação,
         nenhum resultado. Segundo                                                         permitindo que os franceses
         ele, o governador dava mais                                                       se acoitassem no morro da
         atenção à carga de mercado-                                                       Glória e na Ilha de Paranapuã
         rias, desprezando a necessi-                                                      – ver Marinha de D. João III (23)
         dade de patrulha marítima                                                         –, hoje Ilha do Governador e
         e permitindo o crescimento                                                        local onde se encontra o aero-
         da presença inimiga. Termi-  Representação da costa brasileira numa carta portuguesa de ci. de 1550.  porto internacional do Rio de
         na com o desabafo, “quam   Bibliothèque Nationale de France.                      Janeiro. Embora já não contro-
         perdida está esta terra e quam atrazada de  razões da sua nomeação por D. João III, e em  lassem a Baía de Guanabara, não tinham sido
         quam emparada e guardada estava em tem-  nada levariam a crer que tão cedo compre-  completamente expulsos.
         po de Tomé de Sousa”.              endesse a dimensão do problema brasileiro.   O Padre Manuel da Nóbrega, jesuíta que
           Este tipo de queixas não é singular, e pode  Talvez que em Lisboa dominasse a impressão  fora para o Brasil com Tomé de Sousa, co-
         dever-se à falta de sensibilidade de Duarte  de uma enorme desordem administrativa a  nhecedor do território e das condicionantes
         Costa para as questões navais, contudo, é im-  que urgia pôr termo, e se acreditasse que o  étnicas locais, escreveu nessa altura a Dª Ca-
         portante salientar que a presença portugue-  conflito com os franceses podia ser resolvido  tarina explicando como era importante povo-
         sa no Brasil dificilmente resistia à tentação  mais tarde, por via diplomática.  ar a região e construir ali uma cidade, como
         de uma porfiosa busca das fontes dos metais   Estou em crer que, naquela altura, nem  fora feito na Baía de Todos os Santos. Essa po-
         preciosos, em detrimento de uma empenhada  Portugal nem a França deram ao Brasil a im-  sição fortaleceria S. Vicente e Espírito Santo,
         vigilância costeira, protegendo o comércio do  portância que hoje sabemos que tinha. A 11 de  sendo fundamental para garantir a presença
         pau brasil. É de crer que, mesmo em Lisboa,  Junho de 1557 morria em Lisboa o rei portu-  dos portugueses na costa sul do Brasil. Tudo
         esse pensamento tivesse florescido, ao pon-  guês, sem filhos que lhe sucedessem no trono  isto era evidente, mas os meios eram escas-
         to de, uma certa desatenção com a esquadra  e com um neto de três anos – D. Sebastião –,  sos. Só em 1565, depois de várias expedições
         do Brasil, ter permitido o estabelecimento da  que foi aclamado mas que não tinha condi-  navais e esforços continuados, foi possível
         colónia de Villegagnon em Guanabara, com  ções para governar. A regência foi entregue à  lançar os alicerces da vila de S. Sebastião que
         consequências estratégicas que podiam ter  rainha viúva. Em França a situação também  viria a ser a magnífica cidade do Rio de Janei-
         sido desastrosas. Entrar pelo sertão e procu-  não se afigurava favorável a grandes empre-  ro. Mas isso já não será assunto para a Mari-
         rar as riquezas, que já tinham sido alcançadas  endimentos. Aliás, a sua instabilidade polí-  nha de D. João III.
         pelos espanhóis, foi uma ideia que concorreu  tica, resultante dos conflitos religiosos entre          Z
         permanentemente com um efectivo empenho  católicos e protestantes, acabaria por se de-    J. Semedo de Matos
         pelo domínio da costa.             gradar cada vez mais, sobretudo, depois da                     CFR FZ

         16  JUNHO 2007 U REVISTA DA ARMADA
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