Page 212 - Revista da Armada
P. 212
DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (22)
Batalhas e Naufrágios da
Batalhas e Naufrágios da
Marinha de Instrução
Marinha de Instrução
co de madeira que não mate do género “Só disse asneiras, Sr. Cadete!
prima propriamente pela Não percebe mesmo nada disto!”.
ligeireza de manobra), Prosseguindo o desfilar das mil e uma des-
em meados de Janeiro, venturas sofridas pela mancebia escolar-naval,
no pino do Inverno, com não posso deixar de partilhar com os compade-
um frio de congelar o cidos leitores um desgraçado episódio em que
tutano (julgo que agora este vosso camarada se viu num outro aperto:
a rapaziada dispõe de comprimido por um forte cone de vento contra
uns reconfortantes aba- o costado de uma corveta, sem conseguir afas-
fos que mitigam bastante tar a embarcação para o largo, foi “rapando” a
tal inconveniente)! “Ver- linha de água do navio desde o painel de popa
dinhos” e com uma va- até à amura de bombordo, passando por um
guíssima noção do que bocal de descarga no exacto momento em que
é tripular uma embarca- este se pôs a “vomitar” uma mistela viscosa e
ção à vela (a sonolência nauseabunda. Valeu a reconfortante sensação
das aulas teóricas paga- de calor que, por momentos, fez esquecer a
-se bem caro em certas baixa temperatura envolvente.
ocasiões!) tínhamos um A última “saída para o mar”, naquele pri-
verdadeiro tratamen- meiro ano, deu-se já no início de Maio, com o
to de choque naquelas Verão a espreitar descaradamente pela cortina
manhãs arrepiadas, em primaveril. Num dia sem o mínimo vestígio de
que um vento cortante vento, recebemos instruções para sair nas ca-
soprava rajadas traiçoei- noas. Uma vez que estas não chegavam para
ras e tornava frequentes todos, os mais “marretas” tiveram de se apinhar
as “idas ao charco”. Era na baleeira a remos. Com o Professor ausente
aí que o bote de apoio, e excitados pelo facto de estar marcada para
com o Professor a bor- aquela noite uma “cerimónia iniciática” que
do, se aproximava dos marcava o fim da nossa “fase maçarico-mancé-
náufragos, não para os bica”, não tardaram a surgir as primeiras picar-
resgatar ou sequer re- dias entre os canoístas e os “baleeiros”, com os
uando hoje, na nossa Marinha, se confortar, mas para aquele se certificar de que primeiros a salpicar os segundos com fortes pa-
fala em “bases de dados de lições aqueles “chouriços” punham a “barcoleta” gaiadas na água em cada passagem. Estes não
Qaprendidas” poucos haverá que te- novamente a prumo e escoava a água embar- tardaram a reagir, lançando mão da sua “arti-
nham consciência do facto de a primeiríssima cada antes de, finalmente, serem autorizados lharia pesada”: o bartedouro em forma de balde
dessas bases de dados ter, já, sido publicada a regressar à Escola, tiritando rampa acima e que, a cada descarga, ensopava por completo
uns bons séculos atrás sob o título “História ansiando por um duche frio (não havia alterna- os atacantes mais próximos. Em menos de nada
Trágico-Marítima”. Com efeito, embora mui- tiva, pois àquela hora a água quente tinha uma desenrolava-se uma cena de batalha naval dig-
tos considerem aquela compilação de relatos certa dificuldade em chegar ao chuveiro) que, na de figurar nas mais épicas páginas da nossa
uma ilustrativa demonstração da nossa cele- naquelas alturas, até sabia a quente. História, perante a total impotência do monitor
bérrima Lamúria Nacional, a verdade é que ali Mas o que mais nos assustava nas aproxima- que – a bordo da baleeira – nos acompanhava
podemos, numa extensa variedade de casos, ções do bote não eram as reprimendas. Era, sim, (e que também levou por tabela!). Dessa vez,
identificar positivamente “o que é que correu o gosto que o Lente da “cadeira” tinha nas cha- porém, soube bem o “banho”!
mal”. Se aprendemos, ou não, alguma coisa madas orais de surpresa. Nessas ocasiões um E muito mais poderia contar, não fosse o
com isso, já é outra história… (Não, não, pa- dos tripulantes era literalmente raptado (o outro caso de querer poupar os meus muito salpica-
decente leitor, ainda não chegámos ao fim. Um que se desembrulhasse sozinho!) e levado em dos leitores a borrifos adicionais desta já longa
pouco mais de paciência, por favor.) “passeio” pelos navios atracados enquanto era estopada. Então se puxássemos a conversa para
Certo é que aquele precioso conjunto de bombardeado com perguntas. E o nosso Mes- alguns Professores com quem tive o privilégio
crónicas poderia ser significativamente enri- tre tinha um prazer verdadeiramente sádico em de me cruzar na Escola Naval teríamos aqui
quecido com a adição de alguns sucessos vi- “engordar” os nossos disparates, encorajando- pano para mangas e pernas de calças, tal é a
vidos pelos nossos cadetes durante as aulas -nos a fazer desfilar toda a nossa ignorância – profusão de curiosas personalidades que se
práticas de Marinharia na bacia de manobra “Então, Sr. Cadete, diga lá qual é a armação do podem encontrar naquela vetusta instituição!
do Alfeite. Ninguém duvide que são episódios «Creoula»… Palhabote? Muito bem! Descreva Mas, por agora, levemos remos e ferremos o
do mais trágico que a nossa Gesta Marítima já lá, pois, esse tipo de aparelho…” - para, no fim, pano, pois isso será, com toda a certeza, uma
inscreveu nos seus anais! amarfanhando-nos completamente o orgulho, outra história…
Cá o signatário bem se recorda das primeiras reduzindo o nosso ego a puré de batata e en- Z
saídas em vaurien (para quem não sabe, um xovalhando-nos a alma na máxima amplitude, J. Moreira Silva
pequeno veleiro de dois tripulantes com cas- nos fazer “despenhar” de bem alto com um re- CTEN
30 JUNHO 2007 U REVISTA DA ARMADA