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DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (22)



                   Batalhas e Naufrágios da
                   Batalhas e Naufrágios da


                         Marinha de Instrução
                         Marinha de Instrução



                                                            co de madeira que não  mate do género “Só disse asneiras, Sr. Cadete!
                                                            prima propriamente pela  Não percebe mesmo nada disto!”.
                                                            ligeireza de manobra),   Prosseguindo o desfilar das mil e uma des-
                                                            em meados de Janeiro,  venturas sofridas pela mancebia escolar-naval,
                                                            no pino do Inverno, com  não posso deixar de partilhar com os compade-
                                                            um frio de congelar o  cidos leitores um desgraçado episódio em que
                                                            tutano (julgo que agora  este vosso camarada se viu num outro aperto:
                                                            a rapaziada dispõe de  comprimido por um forte cone de vento contra
                                                            uns reconfortantes aba-  o costado de uma corveta, sem conseguir afas-
                                                            fos que mitigam bastante  tar a embarcação para o largo, foi “rapando” a
                                                            tal inconveniente)! “Ver-  linha de água do navio desde o painel de popa
                                                            dinhos” e com uma va-  até à amura de bombordo, passando por um
                                                            guíssima noção do que  bocal de descarga no exacto momento em que
                                                            é tripular uma embarca-  este se pôs a “vomitar” uma mistela viscosa e
                                                            ção à vela (a sonolência  nauseabunda. Valeu a reconfortante sensação
                                                            das aulas teóricas paga-  de calor que, por momentos, fez esquecer a
                                                            -se bem caro em certas  baixa temperatura envolvente.
                                                            ocasiões!) tínhamos um   A última “saída para o mar”, naquele pri-
                                                            verdadeiro tratamen-  meiro ano, deu-se já no início de Maio, com o
                                                            to de choque naquelas  Verão a espreitar descaradamente pela cortina
                                                            manhãs arrepiadas, em  primaveril. Num dia sem o mínimo vestígio de
                                                            que um vento cortante  vento, recebemos instruções para sair nas ca-
                                                            soprava rajadas traiçoei-  noas. Uma vez que estas não chegavam para
                                                            ras e tornava frequentes  todos, os mais “marretas” tiveram de se apinhar
                                                            as “idas ao charco”. Era  na baleeira a remos. Com o Professor ausente
                                                            aí que o bote de apoio,  e excitados pelo facto de estar marcada para
                                                            com o Professor a bor-  aquela noite uma “cerimónia iniciática” que
                                                            do, se aproximava dos  marcava o fim da nossa “fase maçarico-mancé-
                                                            náufragos, não para os  bica”, não tardaram a surgir as primeiras picar-
                                                            resgatar ou sequer re-  dias entre os canoístas e os “baleeiros”, com os
               uando hoje, na nossa Marinha, se  confortar, mas para aquele se certificar de que  primeiros a salpicar os segundos com fortes pa-
               fala em “bases de dados de lições  aqueles “chouriços” punham a “barcoleta”  gaiadas na água em cada passagem. Estes não
         Qaprendidas” poucos haverá que te-  novamente a prumo e escoava a água embar-  tardaram a reagir, lançando mão da sua “arti-
         nham consciência do facto de a primeiríssima  cada antes de, finalmente, serem autorizados  lharia pesada”: o bartedouro em forma de balde
         dessas bases de dados ter, já, sido publicada  a regressar à Escola, tiritando rampa acima e  que, a cada descarga, ensopava por completo
         uns bons séculos atrás sob o título “História  ansiando por um duche frio (não havia alterna-  os atacantes mais próximos. Em menos de nada
         Trágico-Marítima”. Com efeito, embora mui-  tiva, pois àquela hora a água quente tinha uma  desenrolava-se uma cena de batalha naval dig-
         tos considerem aquela compilação de relatos  certa dificuldade em chegar ao chuveiro) que,  na de figurar nas mais épicas páginas da nossa
         uma ilustrativa demonstração da nossa cele-  naquelas alturas, até sabia a quente.  História, perante a total impotência do monitor
         bérrima Lamúria Nacional, a verdade é que ali   Mas o que mais nos assustava nas aproxima-  que – a bordo da baleeira – nos acompanhava
         podemos, numa extensa variedade de casos,  ções do bote não eram as reprimendas. Era, sim,  (e que também levou por tabela!). Dessa vez,
         identificar positivamente “o que é que correu  o gosto que o Lente da “cadeira” tinha nas cha-  porém, soube bem o “banho”!
         mal”. Se aprendemos, ou não, alguma coisa  madas orais de surpresa. Nessas ocasiões um   E muito mais poderia contar, não fosse o
         com isso, já é outra história… (Não, não, pa-  dos tripulantes era literalmente raptado (o outro  caso de querer poupar os meus muito salpica-
         decente leitor, ainda não chegámos ao fim. Um  que se desembrulhasse sozinho!) e levado em  dos leitores a borrifos adicionais desta já longa
         pouco mais de paciência, por favor.)  “passeio” pelos navios atracados enquanto era  estopada. Então se puxássemos a conversa para
           Certo é que aquele precioso conjunto de  bombardeado com perguntas. E o nosso Mes-  alguns Professores com quem tive o privilégio
         crónicas poderia ser significativamente enri-  tre tinha um prazer verdadeiramente sádico em  de me cruzar na Escola Naval teríamos aqui
         quecido com a adição de alguns sucessos vi-  “engordar” os nossos disparates, encorajando-  pano para mangas e pernas de calças, tal é a
         vidos pelos nossos cadetes durante as aulas  -nos a fazer desfilar toda a nossa ignorância –  profusão de curiosas personalidades que se
         práticas de Marinharia na bacia de manobra  “Então, Sr. Cadete, diga lá qual é a armação do  podem encontrar naquela vetusta instituição!
         do Alfeite. Ninguém duvide que são episódios  «Creoula»… Palhabote? Muito bem! Descreva  Mas, por agora, levemos remos e ferremos o
         do mais trágico que a nossa Gesta Marítima já  lá, pois, esse tipo de aparelho…”  - para, no fim,  pano, pois isso será, com toda a certeza, uma
         inscreveu nos seus anais!          amarfanhando-nos completamente o orgulho,  outra história…
           Cá o signatário bem se recorda das primeiras  reduzindo o nosso ego a puré de batata e en-          Z
         saídas em vaurien (para quem não sabe, um  xovalhando-nos a alma na máxima amplitude,       J. Moreira Silva
         pequeno veleiro de dois tripulantes com cas-  nos fazer “despenhar” de bem alto com um re-         CTEN

         30  JUNHO 2007 U REVISTA DA ARMADA
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