Page 285 - Revista da Armada
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DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (23)
A Arte de Bem Receber
A Arte de Bem Receber
A
cozinha portuguesa pode não ser a mais
refinada do Mundo e os nossos vinhos
poderão não ser os mais cotados inter-
nacionalmente (embora estejam muito bem
classificados e nós, no fundo, saibamos que
são os melhores!) mas é certo que, neste capí-
tulo particular, nenhum outro povo sabe apre-
ciar melhor aquilo que é seu. E mais afirmo:
duvido que sobre o globo terrestre haja anfi-
triões mais generosos e com mais gosto em
partilhar as coisas boas de que usufruem. É por
esse motivo que os navios portugueses, longe
de serem os mais sofisticados ou os mais pode-
rosos das forças multinacionais em que se inte-
gram, são, habitualmente, os que mais brilham
depois de passada a primeira espia a terra.
Vem este palavreado a propósito de um epi-
sódio vivido pelo autor destas linhas em terras
de Sua Britânica Majestade… Pronto, já adivi-
nharam e eu confesso: é mais uma estória da-
quele malfadado período de treino operacio-
nal conhecido por OST. Sem querer maçar os
amáveis leitores mais do que é habitual e sem
desejar concentrar demasiado a temática das
narrativas escorridas nestas páginas, vejo-me
forçado a lançar mão do deselegante expe-
diente de espremer ao máximo o parco e de- um RPC (abreviatura de uso protocolar apli- da sala, ainda de copo na mão, exclamando para
sinteressante repertório de que disponho, sob cada, na língua de Shakespeare, à expressão os seus botões: “Então é só isto?! E a comidinha?!
pena de vir, a curto prazo, a privar a sofredo- “Request the Pleasure of your Company”), isto Mas esta gente não almoça?!”
ra audiência da sua sessão bimestral de auto- é, um convite formal e nominal para uma re- Completamente desconsolados, com a barri-
flagelação. Quando o já de si pouco provido cepção na base naval. Claro que a oficialidade ga a rugir furiosamente, lá fomos de regresso à
baú de memórias corre o risco de se esgotar compareceu em peso – a única excepção foi o nossa “barca”, onde a messe já encerrara os seus
rapidamente, há que fazer render o peixe, es- Oficial de Castigo, digo, de Serviço – ou assim serviços. Valeu-nos a compaixão do Despensei-
pecialmente quando pescado num lapso de o não mandasse a etiqueta. Como o evento es- ro, que num caridoso gesto de apoio humanitá-
tempo fértil em aventurosos sucessos. E assim tava programado para o meio-dia, coincidindo, rio, mandou distribuir àquele grupo de famintos
meu dito meu feito, cá vai disto: portanto, com a hora do almoço, íamos fiados algumas sandes com as sobras do almoço, que
Tinha a nossa “Vasco da Gama” acabado de na legítima expectativa de encher o bandulho foram pronta e sofregamente devoradas. Que
chegar a Portland, sofrida que era, já, a primei- com os mais finos petiscos anglo-saxónicos, de- larica tínhamos passado! Que inveja dos dito-
ra grande “esfrega” por ocasião do terrível Staff vidamente regados com uns valentes canecos sos camaradas que duas ou três horas antes se
Sea Check, decidiu o Comando oferecer uma daquelas cervejas tão espessas que se podem tinham lauta e opiparamente batido com umas
recepção a bordo ao Contra-Almirante FOST comer à colher. A parte dos “copos” até correu belas costeletas de novilho! Logo ali foi atribu-
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e a todo o seu staff. Uma vez que se pretendia bem, com a bebida a circular livremente desde ído um novo significado à sigla RPC, desta vez
causar uma primeira impressão favorável, não o momento da nossa chegada. À medida que em bom Português: Raspas Para Comer.
se evitaram despesas nem se pouparam esfor- o tempo passava e a conversa fluía, entre um Assim foi a hospitalidade inglesa. Sorte a da-
ços para receber condignamente os convida- gin-tonic e uns minúsculos canapés para tapar quela gente não estar sujeita à nossa avaliação,
dos, que foram obsequiados com os nossos a covinha do dente, aumentava a curiosidade pois era mais do que certo levar no lombo um
melhores néctares e as mais requintadas igua- sobre a composição da entrada e do prato quen- carimbo de “below standard” ou uma nota ain-
rias lusas. Claro está que os “bifes” se alamba- te, que decerto não demorariam a ser servidos da mais baixa, se a nossa escala o permitisse!
zaram à grande e à portuguesa, sempre alimen- dado o adiantado da hora… E pronto! Com esta historieta finalizo a sé-
tando o nosso ego com rasgadíssimos elogios Com o correr dos minutos, a curiosidade foi rie das “Crónicas do OST”. Bem… Pensando
àquilo que era, sem dúvida, uma promessa de dando lugar à impaciência e esta, por sua vez, ao melhor, talvez não… Acabo de me lembrar
bom desempenho nas árduas lides que se avi- desespero, ao ver aproximar-se a hora de regres- de uma outra situação que merece ser con-
zinhavam. De lá saíram bem comidos e melhor so a bordo sem que se visse o mais leve sinal de tada, embora, eventualmente, diluída noutras
bebidos, embora nem por isso mais amoleci- substituição das alcagoitas e dos miseráveis hors de temática semelhante. Mas essas hão-de ser
dos, como pudemos comprovar à nossa custa d’oeuvres por algo mais substancial. E eis que sur- outras histórias…
durante as semanas seguintes. ge, então, o golpe de misericórdia, desferido pelo Z
Como disse, os avaliadores não se deixaram Sr. Almirante em pessoa, num breve discurso em J. Moreira Silva
influenciar pela paparoca, mas o Contra-Almi- que agradecia a presença de todos e nos desejava CTEN
rante FOST fez questão de retribuir o convite. a continuação de um bom dia. E os convidados Notas
Foi assim que, durante a nossa segunda semana começaram a debandar. Só os portugueses, incré- 1 Flag Officer Sea Training, i.e., a entidade máxima da
de treino de porto, todos os oficiais receberam dulos, permaneciam meio atarantados no centro estrutura de treino operacional.
REVISTA DA ARMADA U AGOSTO 2007 31