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DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (23)



                        A Arte de Bem Receber
                        A Arte de Bem Receber



         A
              cozinha portuguesa pode não ser a mais
              refinada do Mundo e os nossos vinhos
              poderão não ser os mais cotados inter-
         nacionalmente (embora estejam muito bem
         classificados e nós, no fundo, saibamos que
         são os melhores!) mas é certo que, neste capí-
         tulo particular, nenhum outro povo sabe apre-
         ciar melhor aquilo que é seu. E mais afirmo:
         duvido que sobre o globo terrestre haja anfi-
         triões mais generosos e com mais gosto em
         partilhar as coisas boas de que usufruem. É por
         esse motivo que os navios portugueses, longe
         de serem os mais sofisticados ou os mais pode-
         rosos das forças multinacionais em que se inte-
         gram, são, habitualmente, os que mais brilham
         depois de passada a primeira espia a terra.
           Vem este palavreado a propósito de um epi-
         sódio vivido pelo autor destas linhas em terras
         de Sua Britânica Majestade… Pronto, já adivi-
         nharam e eu confesso: é mais uma estória da-
         quele malfadado período de treino operacio-
         nal conhecido por OST. Sem querer maçar os
         amáveis leitores mais do que é habitual e sem
         desejar concentrar demasiado a temática das
         narrativas escorridas nestas páginas, vejo-me
         forçado a lançar mão do deselegante expe-
         diente de espremer ao máximo o parco e de-  um RPC (abreviatura de uso protocolar apli-  da sala, ainda de copo na mão, exclamando para
         sinteressante repertório de que disponho, sob  cada, na língua de Shakespeare, à expressão  os seus botões: “Então é só isto?! E a comidinha?!
         pena de vir, a curto prazo, a privar a sofredo-  “Request the Pleasure of your Company”), isto  Mas esta gente não almoça?!”
         ra audiência da sua sessão bimestral de auto-  é, um convite formal e nominal para uma re-  Completamente desconsolados, com a barri-
         flagelação. Quando o já de si pouco provido  cepção na base naval. Claro que a oficialidade  ga a rugir furiosamente, lá fomos de regresso à
         baú de memórias corre o risco de se esgotar  compareceu em peso – a única excepção foi o  nossa “barca”, onde a messe já encerrara os seus
         rapidamente, há que fazer render o peixe, es-  Oficial de Castigo, digo, de Serviço – ou assim  serviços. Valeu-nos a compaixão do Despensei-
         pecialmente quando pescado num lapso de  o não mandasse a etiqueta. Como o evento es-  ro, que num caridoso gesto de apoio humanitá-
         tempo fértil em aventurosos sucessos. E assim  tava programado para o meio-dia, coincidindo,  rio, mandou distribuir àquele grupo de famintos
         meu dito meu feito, cá vai disto:  portanto, com a hora do almoço, íamos fiados  algumas sandes com as sobras do almoço, que
           Tinha a nossa “Vasco da Gama” acabado de  na legítima expectativa de encher o bandulho  foram pronta e sofregamente devoradas. Que
         chegar a Portland, sofrida que era, já, a primei-  com os mais finos petiscos anglo-saxónicos, de-  larica tínhamos passado! Que inveja dos dito-
         ra grande “esfrega” por ocasião do terrível Staff  vidamente regados com uns valentes canecos  sos camaradas que duas ou três horas antes se
         Sea Check, decidiu o Comando oferecer uma  daquelas cervejas tão espessas que se podem  tinham lauta e opiparamente batido com umas
         recepção a bordo ao Contra-Almirante FOST   comer à colher. A parte dos “copos” até correu  belas costeletas de novilho! Logo ali foi atribu-
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         e a todo o seu staff. Uma vez que se pretendia  bem, com a bebida a circular livremente desde  ído um novo significado à sigla RPC, desta vez
         causar uma primeira impressão favorável, não  o momento da nossa chegada. À medida que  em bom Português: Raspas Para Comer.
         se evitaram despesas nem se pouparam esfor-  o tempo passava e a conversa fluía, entre um   Assim foi a hospitalidade inglesa. Sorte a da-
         ços para receber condignamente os convida-  gin-tonic e uns minúsculos canapés para tapar  quela gente não estar sujeita à nossa avaliação,
         dos, que foram obsequiados com os nossos  a covinha do dente, aumentava a curiosidade  pois era mais do que certo levar no lombo um
         melhores néctares e as mais requintadas igua-  sobre a composição da entrada e do prato quen-  carimbo de “below standard” ou uma nota ain-
         rias lusas. Claro está que os “bifes” se alamba-  te, que decerto não demorariam a ser servidos  da mais baixa, se a nossa escala o permitisse!
         zaram à grande e à portuguesa, sempre alimen-  dado o adiantado da hora…  E pronto! Com esta historieta finalizo a sé-
         tando o nosso ego com rasgadíssimos elogios   Com o correr dos minutos, a curiosidade foi  rie das “Crónicas do OST”. Bem… Pensando
         àquilo que era, sem dúvida, uma promessa de  dando lugar à impaciência e esta, por sua vez, ao  melhor, talvez não… Acabo de me lembrar
         bom desempenho nas árduas lides que se avi-  desespero, ao ver aproximar-se a hora de regres-  de uma outra situação que merece ser con-
         zinhavam. De lá saíram bem comidos e melhor  so a bordo sem que se visse o mais leve sinal de  tada, embora, eventualmente, diluída noutras
         bebidos, embora nem por isso mais amoleci-  substituição das alcagoitas e dos miseráveis hors  de temática semelhante. Mas essas hão-de ser
         dos, como pudemos comprovar à nossa custa  d’oeuvres por algo mais substancial. E eis que sur-  outras histórias…
         durante as semanas seguintes.      ge, então, o golpe de misericórdia, desferido pelo                 Z
           Como disse, os avaliadores não se deixaram  Sr. Almirante em pessoa, num breve discurso em   J. Moreira Silva
         influenciar pela paparoca, mas o Contra-Almi-  que agradecia a presença de todos e nos desejava     CTEN
         rante FOST fez questão de retribuir o convite.  a continuação de um bom dia. E os convidados   Notas
         Foi assim que, durante a nossa segunda semana  começaram a debandar. Só os portugueses, incré-  1  Flag Officer Sea Training, i.e., a entidade máxima da
         de treino de porto, todos os oficiais receberam  dulos, permaneciam meio atarantados no centro   estrutura de treino operacional.
                                                                                     REVISTA DA ARMADA U AGOSTO 2007  31
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