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A MARINHA DE D. JOÃO III (27)



                                Fernão Mendes Pinto
                                Fernão Mendes Pinto


               uando se fala da gesta portuguesa  que financiava o carregamento das naus de   Não é difícil imaginar a vida desses ho-
               no Extremo Oriente, neste período  cravo, noz moscada e macis que iam para  mens que compravam o seu pequeno es-
         Qque antecede a fundação de Macau,  a Índia e para Lisboa; se não passava, não  paço a bordo dos juncos e viajavam numa
         imediatamente vem à memória a figura de  dava lucro à coroa, que também não tinha  semi-clandestinidade, sempre no “fio da
         Fernão Mendes Pinto e as suas Peregrina-  meios para policiar os mares da Insulíndia  navalha” e na esperança de um dia po-
         ções. A obra que nos deixou escrita – e que  cruzados por centenas de juncos de carga.  derem regressar a Portugal com a fortu-
         tanta controvérsia levantou ao longo dos  Por isso, os capitães portugueses também  na amealhada. Foi esta – estou em crer – a
         séculos – é o espelho dessa gente lusa que  o toleravam.              vida de Fernão Mendes Pinto. O texto que
         viveu um pouco ao sabor do destino, pe-  Criou-se, portanto, uma situação dúbia  escreveu – depois de ter regressado a Por-
         los mares da China e do Japão, comercian-  que favoreceu o aventureirismo de mui-  tugal, estando já a viver pacatamente na sua
         do por aqui e acolá, perdendo-se e                                          Quinta do Pragal (Almada) – pode
         reencontrando-se pelas vielas con-                                          ser uma amálgama de factos mal da-
         turbadas de um mundo desordena-                                             tados, incorrectos nos pormenores,
         do. Um mundo onde nada é defini-                                             fantasiosos e exagerados, mas isso
         tivo, nada é seguro, nada é perene                                          não é mais do que o espelho da sua
         e as fronteiras que podia separar a                                         própria vida.
         riqueza e a glória da desgraça e do                                           E não me parece que adiante mui-
         sofrimento eram tão ténues e fuga-                                          to dizer que escreveu de memória e
         zes como o aparecimento súbito de                                           que não tinha presente muitos dos
         um tufão ou como o fugaz estalar de                                         factos de que fala – como fazem al-
         dedos de um mandarim ambicioso.                                             guns comentadores. Não é relevante.
         As relações oficiais entre Portugal                                          O seu livro não pode ser lido como
         e a China comprometeram-se em                                               um relato de factos mas de aventu-
         1522 – como foi dito – mas o Celeste                                        ras: as aventuras de um marinheiro
         Império não podia viver cercado pe-                                         que andou pelos mares da Índia e
         las suas próprias leis, pretendendo                                         da China durante vinte e um anos.
         continuar a consumir os produtos                                            E todos nós sabemos o que são “as
         que lhe chegavam através do mar.                                            aventuras dos marinheiros”. Todos
         A falta de percepção da realidade                                           nós ouvimos o que nos contou a ge-
         concreta vivida ao sabor dos ventos                                         ração anterior à nossa, e uma parte
         e correntes do Sueste Asiático não foi                                      do que ela própria ouviu de outra e
         exclusiva da corte em Lisboa, e teve                                        de outra. Se hoje nos rimos quando
         o seu contraponto em Pequim, num                                            se fala de “sudoeste rijo” é por isso
         espaço, aliás, mais complexo e mais                                         mesmo: porque em tempos se falava
         difícil de moldar.                                                          do “sudoeste rijo” como se o vento
           A China da primeira metade do                                             nessa altura fosse diferente do que
         século XVI consumia vários produ-                                           é hoje, e como se as novas gerações
         tos que estavam à mão dos portu-                                            nunca pudessem vir a saber e a ex-
         gueses, em regiões onde o seu poder                                         perimentar como eram valentes os
         naval era decisivo. E um desses pro-                                        homens de então. E Fernão Mendes
         dutos era a pimenta, que comprava                                           Pinto é essencialmente isso: um ve-
         em muito maior quantidade do que   Frontispício da 1ª edição da “Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto.  lho marinheiro que nos quer dizer
         toda a que passava à Europa, fos-                                           como os temporais do tempo dele
         se pela via do Cabo da Boa Esperança, fos-  tos portugueses de então e que foi a fon-  eram muito piores que os de agora; que os
         se pela via que nunca se fechou no Médio  te de muitas fortunas: comprar pimenta (e  piratas da China eram tantos como já não
         Oriente. Por isso era normal que, apesar  outros produtos) onde quer que a havia, e  há, e tão cruéis como nunca se viu; que a sua
         das proibições, essa especiaria acorresse a  transportá-la em juncos até ao rio de Can-  vida foi feita de sacrifícios e privações como
         vários pontos da costa chinesa, alimentan-  tão ou até alguma das ilhas vizinhas, onde  os leitores nunca poderão imaginar. Mas, se
         do um comércio clandestino de dimensões  não chegava o poder central de Pequim, e  descontarmos tudo isto e soubermos ler A
         inimagináveis. Um comércio onde os portu-  onde as autoridades costeiras pactuavam  Peregrinação com a atenção que merece, ve-
         gueses aventureiros, como Fernão Mendes  com um negócio que lhes trazia grandes  rificamos que é um dos testemunhos mais
         Pinto, ganharam as suas próprias raízes e  proventos. E quando, pelos anos trinta  vivos e reais da vida do mar naquele tem-
         influências, nalguns casos enriquecendo,  do século XVI, o conflito entre a Coreia e  po. As noites de chuva, o vento que rasga
         noutros perdendo a vida ou arrastando-a  o mundo nipónico fechou a via comercial  velas, as amarras que se partem, os navios
         cruelmente nos cárceres chineses. Uma par-  em que circulava a prata japonesa, abriu-se  que vão à garra, as surriadas, as vagas que
         te dessa pimenta passava por Malaca, vinda  mais uma profícua porta de contraban-  varrem o convés, o sono, o cansaço, a fome,
         do Malabar, do Coromandel ou do Achém,  do, onde os portugueses voltavam a ter  o medo, todos eles são legítimos e verda-
         mas a maior porção circulava directamente  um papel decisivo. Desta vez, através de  deiros como não é fácil de encontrar noutra
         para China, entrando pelos portos das pro-  Fujien, província a norte de Cantão, mais  documentação.
         víncias do sueste, do Guangdong e Fujien.  perto das ilhas de Ryu Kyu (as ilhas dos                   Z
         Se passava por Malaca, pagava os direitos  Léquios, entre Taiwan e o Japão) e do país    J. Semedo de Matos
         alfandegários de que vivia a feitoria, e com  do Sol Nascente.                                    CFR FZ

         20  SETEMBRO/OUTUBRO 2007 U REVISTA DA ARMADA
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