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Portugal e a Europa
                            Portugal e a Europa

                             à hora de Napoleão
                             à hora de Napoleão



         O                                                                       Em 1803, Rodrigo de Sousa Coutinho, na
               princípio do século XIX europeu  um poder marítimo que Portugal não tinha,
               não teve paralelo sob o ponto de  mas também era verdade que os britânicos  qualidade de Presidente do Tesouro Real,
                                            tinham dessa aliança uma opinião muito  elaborara um pequeno memorial em que
               vista da agitação social e uma con-
         flitualidade intensa que ultrapassou a forma  própria que tinha deixado Portugal em mui-  avisava o Príncipe da necessidade de defen-
         comum das guerras de outros tempos. A  to maus lençóis meia dúzia de anos atrás,  der a coroa em todas as circunstâncias que
         França Revolucionária, com mais ou menos  quando da chamada Guerra das Laranjas.  a conjuntura internacional ditasse. Caso os
         intensidade e variando o seu próprio alinha-  Foram circunstâncias que criaram muita des-  franceses alguma vez entrassem em Portu-
         mento, enfrentou quase todos os outros paí-  confiança nas elites políticas portuguesas,  gal, como já tinham feito na Suíça, no Reino
         ses europeus. Foram diversas as coligações  em nada favorecendo um leal empenho do  de Nápoles ou no Piemonte, a abolição da
         que se lhe opuseram, mas sempre com a  país na mais velha aliança europeia. Com-  monarquia será uma das suas medidas ime-
         presença de duas potências: a Áustria que  preendia-se a divisão de opiniões e a alter-  diatas, e com ela sucumbirá todo o império
         os defrontou em terra e se opôs ao alarga-  nância de influência política pró-britânica  ultramarino, onde o Brasil tem um lugar de
         mento das fronteiras; e a Grã-Bretanha que  e pró-francesa, adiando qualquer decisão  destaque. Devia, portanto, o soberano con-
         disputou com sucesso a soberania do                                       siderar muito seriamente a possibilida-
         mar, que seria o grande calcanhar de                                      de de passar ao Brasil, onde se levan-
         Aquiles gaulês. Apesar da sua posição                                     tará um poderoso império e de onde
         periférica afastada das fronteiras do                                     poderá regressar e reconquistar os ter-
         conflito, Portugal foi arrastado por duas                                  ritórios europeus. Sousa Coutinho foi
         vezes para este vendaval europeu, sem-                                    demitido das suas funções na sequên-
         pre forçado pelo alinhamento tradicio-                                    cia de uma intriga onde pontua ram os
         nal a par da Inglaterra, numa aliança                                     partidários da aproximação à França,
         que nunca encontrou alternativas cre-                                     mas a ideia não desaparecia, como se
         díveis depois da Restauração de 1640.                                     provou em 1807, quando efectivamen-
         E 1805, já com Napoleão Bonaparte na                                      te os franceses invadiram Portugal.
         posição de imperador, chega a Lisboa                                       Como disse, contudo, em 1806 as
         o General Jean Andoche Junot, como                                        diligências do embaixador inglês não
         embaixador de França, trazendo a par-                                     foram levadas muito a sério e o seu
         ticular incumbência de convencer o rei                                    regresso à Grã-Bretanha, sem nenhu-
         de Portugal a abandonar essa aliança e                                    ma decisão concreta de D. João, tem
         a fechar os portos nacionais à navega-                                    sido interpretado como um fracasso. E
         ção britânica. Entendia Bonaparte que                                     quando, em 1807, Napoleão se virou
         o segredo para derrotar a velha Albion                                    de novo para a Península Ibérica, reu-
         era cortar-lhe as vias de comércio ma-                                    nindo em Baiona, o exército comanda-
         rítimo que a alimentavam, e Lisboa era                                    do pelo General Junot, com o intuito
         um ponto de apoio fundamental dentro                                      de ocupar Portugal e negar a utilização
         da densa teia de rotas oceânicas, que                                     dos seus portos aos ingleses, o governo
         ligavam a metrópole aos seus vastíssi-                                    português continuou a tentar retardar
         mos domínios de além-mar.                                                 a campanha, com respostas dúbias e
           No essencial, não estava enganado o                                     medidas dilatórias. Tal não era já pos-
         Imperador. Mas Portugal também não    General Junot.                      sível, contudo. Em 29 de Outubro era
         tinha alternativas credíveis que lhe garantis-  clara e definitiva. Sobretudo porque a loca-  assinado, entre a França de Bonaparte e a
         sem a preservação dos territórios ultramari-  lização geográfica do país não fazia prever  Espanha de Godoy, o célebre tratado de
         nos, porque, no momento em que hostilizas-  que estivesse na primeira linha de fogo, de  Fontainebleau, que reforçava a adesão espa-
         se a Grã-Bretanha ser-lhe-ia vedado o acesso  um momento para o outro.  nhola ao Bloqueio Continental, já assinado
         ao mar, sem apelo nem agravo. A missão di-  A pressão efectuada pela França, com a  em Fevereiro, e a permissão para a passa-
         plomática de Junot estava, portanto, votada  embaixada de Junot em 1805 não passou  gem do exército francês que ocuparia Por-
         ao fracasso, de pouco lhe valendo os apoios  despercebida aos britânicos, que em Agosto  tugal. O acordo previa a futura divisão do
         e a solidariedade ideológica de alguns secto-  de 1806 enviaram uma esquadra a Lisboa,  país em três partes, de que a parcela norte
         res nacionais muito ligados ao poder. É ver-  com o emissário Lord Rosslyn. Também eles  seria dada ao Reino da Etrúria (criado por
         dade que o governo dirigido pelo Príncipe  pressionavam o regente D. João alertando-o  Bonaparte em 1801), a do centro seria uma
         Regente D. João (futuro D. João VI) se carac-  para o perigo de uma invasão e para a ne-  moeda de troca para os ingleses abandona-
         terizou por múltiplas hesitações, adiando to-  cessidade de garantir a sua defesa, com a  rem Gibraltar e a do sul para Godoy com
         das as decisões definitivas no que dizia res-  qual a Inglaterra estaria disposta a colabo-  o título de Príncipe dos Algarves. Portugal
         peito à política externa, mas a cínica frieza  rar. Alertou ainda o governo português para  não tinha alternativa. Através de Domingos
         e a arrogância das potências envolvidas no  a possibilidade de retirar a corte e a família  de Sousa Coutinho (irmão de D. Rodrigo),
         conflito – nomeadamente a Grã-Bretanha  real para o Brasil, caso essa invasão ocor-  assinava-se em Londres, a 22 de Outubro,
         e a França – recomendava esta postura não  resse e não pudesse ser detida na fronteira.  um acordo secreto em que a Grã-Bretanha
         permitindo uma escolha segura.     Aparentemente ninguém deu muita impor-  se comprometia a enviar uma esquadra para
           É verdade que a aliança inglesa tinha  tância a estes avisos e sugestões, mas é de  a foz do Tejo, com o objectivo de proteger
         sido uma das garantias da independência e  crer que o cenário estava na mente de alguns  a saída de todos os navios de guerra e mer-
         da manutenção de um império, que exigia  sectores próximos do poder.   cantes, pertencentes à Marinha Real ou a

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