Page 332 - Revista da Armada
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Portugal e a Europa
Portugal e a Europa
à hora de Napoleão
à hora de Napoleão
O Em 1803, Rodrigo de Sousa Coutinho, na
princípio do século XIX europeu um poder marítimo que Portugal não tinha,
não teve paralelo sob o ponto de mas também era verdade que os britânicos qualidade de Presidente do Tesouro Real,
tinham dessa aliança uma opinião muito elaborara um pequeno memorial em que
vista da agitação social e uma con-
flitualidade intensa que ultrapassou a forma própria que tinha deixado Portugal em mui- avisava o Príncipe da necessidade de defen-
comum das guerras de outros tempos. A to maus lençóis meia dúzia de anos atrás, der a coroa em todas as circunstâncias que
França Revolucionária, com mais ou menos quando da chamada Guerra das Laranjas. a conjuntura internacional ditasse. Caso os
intensidade e variando o seu próprio alinha- Foram circunstâncias que criaram muita des- franceses alguma vez entrassem em Portu-
mento, enfrentou quase todos os outros paí- confiança nas elites políticas portuguesas, gal, como já tinham feito na Suíça, no Reino
ses europeus. Foram diversas as coligações em nada favorecendo um leal empenho do de Nápoles ou no Piemonte, a abolição da
que se lhe opuseram, mas sempre com a país na mais velha aliança europeia. Com- monarquia será uma das suas medidas ime-
presença de duas potências: a Áustria que preendia-se a divisão de opiniões e a alter- diatas, e com ela sucumbirá todo o império
os defrontou em terra e se opôs ao alarga- nância de influência política pró-britânica ultramarino, onde o Brasil tem um lugar de
mento das fronteiras; e a Grã-Bretanha que e pró-francesa, adiando qualquer decisão destaque. Devia, portanto, o soberano con-
disputou com sucesso a soberania do siderar muito seriamente a possibilida-
mar, que seria o grande calcanhar de de de passar ao Brasil, onde se levan-
Aquiles gaulês. Apesar da sua posição tará um poderoso império e de onde
periférica afastada das fronteiras do poderá regressar e reconquistar os ter-
conflito, Portugal foi arrastado por duas ritórios europeus. Sousa Coutinho foi
vezes para este vendaval europeu, sem- demitido das suas funções na sequên-
pre forçado pelo alinhamento tradicio- cia de uma intriga onde pontua ram os
nal a par da Inglaterra, numa aliança partidários da aproximação à França,
que nunca encontrou alternativas cre- mas a ideia não desaparecia, como se
díveis depois da Restauração de 1640. provou em 1807, quando efectivamen-
E 1805, já com Napoleão Bonaparte na te os franceses invadiram Portugal.
posição de imperador, chega a Lisboa Como disse, contudo, em 1806 as
o General Jean Andoche Junot, como diligências do embaixador inglês não
embaixador de França, trazendo a par- foram levadas muito a sério e o seu
ticular incumbência de convencer o rei regresso à Grã-Bretanha, sem nenhu-
de Portugal a abandonar essa aliança e ma decisão concreta de D. João, tem
a fechar os portos nacionais à navega- sido interpretado como um fracasso. E
ção britânica. Entendia Bonaparte que quando, em 1807, Napoleão se virou
o segredo para derrotar a velha Albion de novo para a Península Ibérica, reu-
era cortar-lhe as vias de comércio ma- nindo em Baiona, o exército comanda-
rítimo que a alimentavam, e Lisboa era do pelo General Junot, com o intuito
um ponto de apoio fundamental dentro de ocupar Portugal e negar a utilização
da densa teia de rotas oceânicas, que dos seus portos aos ingleses, o governo
ligavam a metrópole aos seus vastíssi- português continuou a tentar retardar
mos domínios de além-mar. a campanha, com respostas dúbias e
No essencial, não estava enganado o medidas dilatórias. Tal não era já pos-
Imperador. Mas Portugal também não General Junot. sível, contudo. Em 29 de Outubro era
tinha alternativas credíveis que lhe garantis- clara e definitiva. Sobretudo porque a loca- assinado, entre a França de Bonaparte e a
sem a preservação dos territórios ultramari- lização geográfica do país não fazia prever Espanha de Godoy, o célebre tratado de
nos, porque, no momento em que hostilizas- que estivesse na primeira linha de fogo, de Fontainebleau, que reforçava a adesão espa-
se a Grã-Bretanha ser-lhe-ia vedado o acesso um momento para o outro. nhola ao Bloqueio Continental, já assinado
ao mar, sem apelo nem agravo. A missão di- A pressão efectuada pela França, com a em Fevereiro, e a permissão para a passa-
plomática de Junot estava, portanto, votada embaixada de Junot em 1805 não passou gem do exército francês que ocuparia Por-
ao fracasso, de pouco lhe valendo os apoios despercebida aos britânicos, que em Agosto tugal. O acordo previa a futura divisão do
e a solidariedade ideológica de alguns secto- de 1806 enviaram uma esquadra a Lisboa, país em três partes, de que a parcela norte
res nacionais muito ligados ao poder. É ver- com o emissário Lord Rosslyn. Também eles seria dada ao Reino da Etrúria (criado por
dade que o governo dirigido pelo Príncipe pressionavam o regente D. João alertando-o Bonaparte em 1801), a do centro seria uma
Regente D. João (futuro D. João VI) se carac- para o perigo de uma invasão e para a ne- moeda de troca para os ingleses abandona-
terizou por múltiplas hesitações, adiando to- cessidade de garantir a sua defesa, com a rem Gibraltar e a do sul para Godoy com
das as decisões definitivas no que dizia res- qual a Inglaterra estaria disposta a colabo- o título de Príncipe dos Algarves. Portugal
peito à política externa, mas a cínica frieza rar. Alertou ainda o governo português para não tinha alternativa. Através de Domingos
e a arrogância das potências envolvidas no a possibilidade de retirar a corte e a família de Sousa Coutinho (irmão de D. Rodrigo),
conflito – nomeadamente a Grã-Bretanha real para o Brasil, caso essa invasão ocor- assinava-se em Londres, a 22 de Outubro,
e a França – recomendava esta postura não resse e não pudesse ser detida na fronteira. um acordo secreto em que a Grã-Bretanha
permitindo uma escolha segura. Aparentemente ninguém deu muita impor- se comprometia a enviar uma esquadra para
É verdade que a aliança inglesa tinha tância a estes avisos e sugestões, mas é de a foz do Tejo, com o objectivo de proteger
sido uma das garantias da independência e crer que o cenário estava na mente de alguns a saída de todos os navios de guerra e mer-
da manutenção de um império, que exigia sectores próximos do poder. cantes, pertencentes à Marinha Real ou a
6 NOVEMBRO 2007 U REVISTA DA ARMADA