Page 333 - Revista da Armada
P. 333
privados. Em troca Portugal abriria um ou e na reacção dos filósofos iluministas que previa ou sequer sonhava com os anos de
dois portos do Brasil ao comércio britâni- reordenaram valores, e conseguiram um vertigem que se lhe seguiram. Se a tragédia
co, nas mesmas condições que tinham em impact e extraordinário das suas ideias junto concebida pelos gregos é uma marcha in-
Lisboa. Este tratado nunca viria a ser ratifi- das classes médias letradas que agitaram a controlável para o abismo de personagens
cado, mas permitia, no tempo imediato, inebriados pela descoberta de um qual-
a retirada da família real para o Brasil, quer segredo esfíngico (surdos aos avi-
com a garantia de preservação da mo- sos do coro), a marcha da Revolução é
narquia soberana que, naturalmente, disso um exemplo perfeito.
nunca poderia sobreviver com a ocu- Toda a Europa acompanhou com uma
pação francesa. atenção expectante os acontecimentos
O exército de Junot entrou em Portu- que se seguiram a 1789, e a opinião ge-
gal na zona de Segura, avançando ao ral dos intelectuais mais notórios (Kant,
longo do Tejo até Abrantes, Santarém, Goethe, Foster, etc.) era favorável ao
Vila Franca. Foi recebido em Sacavém movimento revolucionário. Exceptuou-
por uma deputação do nomeado Con- -se, talvez, o caso dos ingleses, que não
selho de Regência, a 29 de Novembro e podiam deixar de reconhecer algumas
entrou em Lisboa no dia 30, à frente de das ideias presentes na Revolução Ame-
um grupo de 1500 homens. O exérci- ricana, que levara a secessão dos Esta-
to francês estava muito desgastado pela dos Unidos. Sob o ponto de vista das
marcha forçada a que fora obrigado des- relações internacionais, o fenómeno
de a fronteira, mas não encontrara qual- era novo e ninguém estava preparado
quer resistência militar organizada. O para ele. As monarquias absolutas não
único contratempo fora causado pelas podiam deixar de se inquietar com os
más condições meteorológicas que asso- exemplos que vinham de França, mas
laram o país nesse longínquo Outono de o cuidado que lhe dispensavam era o
1807. O seu principal inimigo foi o mau mesmo que já tinham com a difusão da
tempo, que cessou, subitamente, no dia filosofia iluminista. Na perspectiva das
29, permitindo que a esquadra largasse ameaças entre estados – que fora um
pano em direcção ao sul. Portugal iria flagelo durante todo o século XVIII –
passar um período particularmente agi- a Revolução parecia inofensiva, tanto
tado até 1811, sob ocupação estrangeira mais que afirmava como princípio fun-
directa, a que se seguiu uma fase menos damental a renúncia da guerra contra
aguda mas ainda frágil, com uma tutela Napoleão Bonaparte. outrem, não se compreendendo como
inglesa directa e sempre sob a ameaça Jean-Baptiste Isabey – 1802. podia ser fina a película que separava
do vendaval napoleónico, que só terminou mole parisiense numa altura particularmen- um claro intuito de anexação de território,
em 1815. Com a conferência realizada nes- te crítica. A Revolução tomou conta dos es- da ideia rebuscada de “invadir um espaço
sa cidade e o tratado assinado pelos estados píritos antes de passar aos factos, e fê-lo de para o libertar”. Com este argumento, ali-
europeus, encerrava-se um ciclo tremendo uma forma ingénua e antropologicamente ás, se proclamava que as fronteiras natu-
que começara no último quartel do século optimista, muito própria do iluminismo que rais da França eram aquelas que lhe tinham
XVIII e que varrera toda a Europa levantada lhe está na origem. Será difícil saber se no sido dadas naturalmente pelo Oceano, pe-
em armas. Não é possível abordá-la em los Pirenéus, pelos Alpes e pelo Reno,
detalhe, nos limites restritos deste artigo, o que – com o andar dos meses – não
mas é importante observar alguns dos deixaria de suscitar desconfianças nos
seus pormenores, dando relevo aos seus estados italianos, na Áustria, nos prín-
principais actores. cipes alemães (nomeadamente na Prús-
Não há dúvida que o acontecimento sia) e na própria Inglaterra, que veria
político e social mais intenso de todo com a apreensão a ideia de ocupar os
o século XVIII (e XIX) foi a Revolução territórios da Bélgica e a foz dos gran-
Francesa. Os historiadores consideram- des rios que corriam da Europa Central
-na como o marco que põe fim à Idade para o norte.
Moderna e marca a entrada no período Um conjunto de estranhos aconte-
contemporâneo, não só pela agitação cimentos (difíceis de esclarecer na sua
que provocou e pela intensidade de origem) precipita uma alteração polí-
quase tudo o que lhe diz respeito, mas, tica que tem na data de 10 de Agosto
sobretudo, pelas alterações conceptu- de 1792 o marco mais importante. É
ais que lhe estão ligadas. Alterações de nessa altura que surge em frente das
natureza política e social – bem enten- Tulherias o batalhão de soldados mar-
dido que mudaram todas as relações de selheses, cantando o hino que até hoje
poder europeias, mas também de natu- ficou como o hino nacional francês.
reza científica, ética e até religiosa. A Dissolve-se a Assembleia Nacional e
Revolução Francesa trouxe uma nova é proclamada a República, governada
maneira de pensar que tomou conta de por uma Convenção, precipitando-se
todos os povos, com mais ou menos in- William Pitt. os acontecimentos que levaram ao
tensidade, nalguns casos através de uma Primeiro-ministro britânico. julgamento grosseiro e à execução de
adesão positiva aos seus princípios, noutros dia 14 de Julho de 1789 – uma data simbóli- Luís XVI, a 21 de Janeiro de 1793. A Revo-
pela contestação e negação dos mesmos. ca que ainda hoje é o dia nacional da Fran- lução entra na sua fase mais sangrenta que
Não foi indiferente para ninguém. Os seus ça, e encarado como o dia da liberdade da duraria até ao estabelecimento de um Di-
antecedentes encontram-se na crise moral pátria francesa –, quando os amotinados to- rectório governativo em 1795. A questão
que se agudiza durante todo o século XVIII, maram conta da prisão da Bastilha, alguém mais importante prende-se com o choque
REVISTA DA ARMADA U NOVEMBRO 2007 7