Page 87 - Revista da Armada
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A MARINHA DE D. JOÃO III (32)
Estêvão da Gama
Estêvão da Gama
stêvão da Gama era o 2º filho do Con- tro em breve e o escolhido na sucessão seria de imediato, todos os navios disponíveis. O
de Almirante D. Vasco da Gama, e ele. O seu passado e a reacção que teve, recente conflito de Diu mostrara a possibili-
Ecom ele partiu para a Índia na esqua- quando soube da notícia, não concordam dade de navios turcos aparecerem no Índico,
dra de 1524, capitaneando uma das carave- com tão rebuscada manobra política. afrontando o poder português, e a própria
las. Regressando, mais tarde, ao reino, foi Ca- A primeira preocupação que teve, enquan- armada que retirara em 1538, podia regres-
pitão da Armada do Estreito, em 1530, mas to governador da Índia, foi o de mandar cha- sar em qualquer altura. Era essa a preocu-
em 1532 voltava à Índia como Capitão -Mor mar o ouvidor geral e provedor-mor dos de- pação de Estêvão da Gama. Em Goa foram
da Armada desse ano, indo tomar posse da funtos, para que inventariassem todos os seus varadas todas as embarcações que estavam
capitania de Malaca em 1534. Esteve nes- bens, antes mesmo de iniciar as funções. Não na barra e que andavam por Cambaia, be-
se cargo até 1539, data em que regressou a pretendia, de maneira nenhuma, que os bens neficiando-as e protegendo-as da monção de
Cochim e por ali se manteve, não embar- que já tinha fossem confundidos com quais- Sudoeste, que começava em Maio. Ao mes-
cando para Lisboa em 1540, como poderia quer benefícios que pudesse vir a adquirir mo tempo, mandou o seu irmão Cristóvão da
ter feito porque mais nada o prendia Gama a Cochim, onde foram construí-
no Oriente. Disse-se na Índia que, ao dos dois galeões e efectuados fabricos
saber da partida de Martim Afonso em todos os restantes navios. Em 31 de
de Sousa em 1539, consciente da im- Dezembro de 1540, pelo nascer do Sol,
portância que tinha na hierarquia da saiu a barra com vento “terrenho”, na-
nobreza, presumiu que o governo da vegando ao longo da costa com pouca
Índia lhe caberia, acontecendo algo vela e fundeando em frente ao rio de
ao velho Vice-Rei D. Garcia de No- Chaporá, para reunir toda a frota, an-
ronha. Aliás, com a idade que este já tes de largar para o Estreito. Dos por-
tinha, não se esperava que pudesse menores da viagem nos dá notícia o
resistir muito tempo às garras agudas conhecido Roteiro do Mar Roxo, escrito
do clima tropical de Goa, como veio por D. João de Castro, capitão de um
a acontecer. Sucede, no entanto, que dos galeões construídos em Cochim,
quem testemunhou a abertura das e que constitui um excelente trabalho
cartas de sucessão, e observou a reac- de náutica a merecer outra referência
ção de D. Estêvão da Gama, ao saber numa futura Revista.
que deveria ser o novo governador, Partiram “sessenta e sete navios de
não conseguiu identificar nenhuma remo [...] e doze vellas grossas”, com
especial alegria na face de quem rece- cerca de 2000 homens de armas, que
bia tão prestigioso cargo. Não assistiu foram fazer aguada a Socotorá e al-
sequer ao ritual da abertura das car- cançaram o Bab al-Mandab, à entrada
tas, alegando uma má disposição in- do Mar Vermelho, em 28 de Janeiro de
capacitante, e, quando recebeu a no- 1541. O governador mandou que seu
tícia, mostrou-se cabisbaixo e triste, irmão fosse na frente, com os navios
aceitando o cerimonial do juramento ligeiros, com o intuito de arranjar pilo-
e sagração com sentido de dever, mas tos que os levassem a Suez, mas toda a
sem o natural entusiasmo de quem ia região estava despovoada, com o avi-
ser governador da Índia. Um aparen- so da presença de tamanha esquadra
te desprendimento, que poderia ser D. Estêvão da Gama, Governador da Índia. portuguesa. Seguiu até Dalaca e Maçuá
apenas uma dado do seu carácter ou Livro de Lisuarte de Abreu. guiado por dois pilotos que trouxera de
fruto das circunstâncias. D. Cristóvão tinha no cargo, fazendo-o cair no rol da corrupção Diu, que lhe recomendaram que não seguisse
acabado de cumprir uma missão espinho- associada aos anteriores governadores. Essa com os navios de alto bordo. Efectivamente,
sa como Capitão de Malaca, onde falecera corrupção existia, de facto (como se viu em as condições de vento ponteiro são particular-
o seu irmão, Paulo da Gama. Foram quase números anteriores), mas ele sabia como era mente desfavoráveis à progressão para o nor-
cinco anos de guerra constante, que, apesar fácil a calúnia que colhia em Lisboa, e dava te, só sendo possível fazê-lo em embarcações
de tudo, lhe permitiram acumular de uma azo a vinganças pessoais. Quem se via afron- ligeiras e propulsão a remos. Só uns quantos
enorme fortuna que pretendia trazer para tado pela justiça do governador ou vice-rei, passaram adiante. Quando chegaram à vista
Lisboa. Digamos que tinha de sua fazenda fosse qual fosse a razão dessa contenda, a de Suez e avistaram as galés varadas em ter-
o suficiente para olhar o cargo com algum forma imediata de exercer represálias era fa- ra, verificaram também que as defesas turcas
distanciamento ou, pelo menos, sem a an- zer chegar ao reino o rumor de corrupção. A eram demasiado fortes para que se tentasse
siedade que observámos noutros candida- corte e as ruas de Lisboa se encarregariam do o desembarque, mas a ousadia de chegar
tos. Era solteiro, talvez quisesse constituir resto, espalhando o opróbrio sobre quem (por tão longe, alcançando o coração do inimigo,
família, e compreende-se que ao cabo de vezes) não tinha outra culpa que a firmeza de mostrava a disposição dos portugueses para
tanta canseira desejasse voltar a Portugal, carácter num governo complexo, como era o a guerra e a capacidade de mobilização de
de onde saíra há oito anos. Se El-Rei queria do Estado Português da Índia. meios navais no Índico. O objectivo estava
que fosse governador da Índia, não deixaria Segundo o cronista de D. João III, Francisc o cumprido e os resultados sentir-se-iam nos
de lhe conceder essa mesma graça noutra de Andrada, de imediato disponibilizou vin- anos seguintes.
altura, e não me parece possível que se dei- te mil pardaus de sua fazenda, para prover Z
xasse ficar, alimentado pela secreta esperan- os armazéns de Goa e dar novo alento aos J. Semedo de Matos
ça de que Garcia de Noronha morreria den- trabalhos da ribeira, onde mandou preparar, CFR FZ
REVISTA DA ARMADA U MARÇO 2008 13