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Sôdade da Barca Sagres
                           Sôdade da Barca Sagres

               uer a morna da Barca Sagres, quer a simpatia de que o próprio   Embora se lhe reconheça a capacidade de explorar uma temática mui-
               navio desfruta junto da população em Cabo Verde, sobretudo  to variada, a morna em regra privilegia determinados temas como o amor,
         Qno Porto Grande do Mindelo, ambas constituem mais uma im-  a partida, o mar e uma particular afeição pela terra natal, temas esses que
         portante herança legada pela antiga Sagres, que a Marinha Portuguesa  são igualmente o cerne de outros géneros musicais.
         tem procurado e sabido preservar. No ano em que se comemoram 80   A morna é normalmente acompanhada pela guitarra, conhecida em
         anos sobre a primeira de um total de 46 visitas efectuadas por ambos os  Cabo Verde como violão, podendo ainda contar, nas formações musicais
         navios-escolas àquele porto, apraz-nos recordar que não existe memória  mais complexas, com violino, piano, percussão e instrumentos de sopro,
         duma relação de oito décadas subsistir por mero acaso…  tanto metais como madeiras. Apesar de nos anos 60 se ter iniciado uma
                                                              transição progressiva para instrumentos eléctricos, com a bateria a substituir
           A morna é um género musical, mas também de dança, típica do arquipé-  a percussão, a verdade é que na última década começaram a ter grande pro-
         lago de Cabo Verde, que se tem constituído como um dos elementos mais  cura as interpretações de carácter eminentemente acústico (unplugged).
         relevantes no que concerne à preservação da cultura e memória crioulas.   A exemplo do género musical que qualifica, também a origem da pa-
         Dado o seu carácter transversal, identificam-se com ela todos os estratos  lavra morna tem sido alvo de acesas discussões, aqui e ali eivadas de al-
         sociais e grupos etários, tanto a nível geográfico como cronológico. Pode  guma polémica mais contundente. Uns defendem que esta deriva do in-
         dizer-se, salvaguardando as devidas diferenças de escala, que neste aspecto  glês to mourn, que se encontra associado ao acto de lamentar, chorar ou
         a morna tem muito maior acolhimento junto da população de Cabo Verde  sentir a morte de alguém. No entanto, outros julgam ter origem no francês
                                                              morne, que é sinónimo de          Visitas dos navios-escolas ao
       Arquivo CTEN António Gonçalves                         lico. Porém, a maioria dos   Antiga Sagres  Selô Selô  Ilha de São Vicent
                                                              sombrio, triste e melancó-
                                                              que se têm dedicado ao
                                                                                                                Morna da B
                                                              seu estudo, considera que
                                                                                     1928 (1)
                                                              etimologicamente este ter-
                                                              mo não vai além da adop-
                                                                                               É barca Sagres
                                                              ção do feminino da palavra
                                                                                     1931 (1)
                                                                                               Ama di marinhêiro
                                                              morno, que identifica algo   1929 (1)  Noiba di mar
                                                              cuja temperatura se situa   1932 (1)  Ninfa di Tejo
                                                              entre o frio e o quente, logo   1936 (2)  Di porte facêro
                                                              pouco aquecido ou tépido.   1937 (2)  Qui onda di Oceano tá bejá
                                                                                               Brisa d’espaço tá mimá
                                                              Sem querer tomar partido,
                                                              e a avaliar pelo que conhe-  1938 (1)  Ninfa di Tejo
                                                              cemos deste género musi-  1939 (1)  Bô ê galante e frumosa
                                                              cal, julgamos que as três   1940 (1)  Strela di mar…
                                                              explicações fazem senti-  1941 (1)  Bô e mansa e garbosa
                                                                                               Ai co bô ar di rainha
                                                              do e até de certa forma se       Di traço divinal
                                                              complementam.          1942 (1)  Bô ê noiba di Marinha
                                                               Talvez o maior expoente   1944 (1)  Di nôs qrido Portugal
                                                              da morna tenha sido o ca-  1945 (1)
                                                              bo-verdiano Francisco Xa-        Strêla di mar
                                                                                               Lebanô sôdade
                                                              vier da Cruz (1905-1958),   1948 (1)  Na frol d’escuma
                                                              mais conhecido como B.   1950 (1)  Branca di bô ágo
                                                              Leza, que introduziu alte-  1951 (1)  Qui nô stá mandá
                                                              rações profundas no seu   1952 (1)  Comandante Cisnero
                                                              cânone. Ao longo da sua          Lebanô lembrança e sôdade
                                                              vida escreveu mornas nas   -     Abraço dês povo sincero
                                                              ilhas de S. Vicente, Santo   19    Francisco Xavier da Cruz (B. Leza)
                                                              Antão, Fogo, Santiago e
         do que o tango na Argentina ou o do que o próprio fado em Portugal.  também em Lisboa, chegando mesmo a compor em alto mar, no decur-
           Não existindo qualquer certeza relativamente ao local onde surgiu a  so das suas viagens. Uma parte importante da sua poesia deu voz às difi-
         morna, a tradição oral aponta no sentido de poder ter tido a sua origem na  culdades sentidas pelos seus compatriotas que na época procuraram uma
         ilha da Boavista, pelo meado do século XVIII, e talvez antecedida pela in-  vida melhor em paragens como Dakar, S. Tomé, Angola, Argentina e Bra-
         trodução no arquipélago do antigo género musical conhecido como lun-  sil. De forma inovadora, distinguiu-se igualmente pelo facto de nas suas
           1
         du  . Trabalhada aí por músicos locais, foi aos poucos passando para as  composições ter manifestado particular preocupação na forma como os
         outras ilhas do arquipélago, considerando-se que a partir de então evoluiu  conflitos internacionais afectaram o povo de Cabo Verde, nomeadamen-
         de acordo com ciclos onde pontificam os compositores de referência, não  te a Segunda Guerra Mundial, expressando a sua mágoa em relação às
         obstante existirem indícios que associam «diferentes estilos de morna» às  atrocidades cometidas por Adolf Hitler, através do tema Hitler ca ta ganhá
         respectivas ilhas:                                   Guerra n’ê nada.
           - 1º período – origens (séc. XVIII – final séc. XIX);  Fruto de um convívio estreito com Portugal, B. Leza, por intermédio da
           - 2º período – Eugénio Tavares (até aos anos 20);  morna, criou inúmeras pontes com a cultura portuguesa, considerando-
           - 3º período – B. Leza (anos 30 a 40);             -se que esse facto também terá contribuído para a existência de melhores
           - 4º período – (anos 50 a 70);                     relações entre os dois povos, isto numa altura em que começavam a des-
           - 5º período – (desde os anos 80).                 pontar, um pouco por todo o continente africano, problemas conotados
           Em termos musicais a morna caracteriza-se pelo seu andamento   len-  com a ocupação colonial. Exemplos desta estreita relação cultural são as
                                                        2
         to, sendo frequentemente monotónica, ou seja, composta apenas numa  composições Bejo di Sôdade, Bartolomeu Dias e Barca Sagres.
         tonalidade, ao passo que a estrutura poética se organiza em estrofes, que   Embora se desconheçam as circunstâncias que terão levado B. Leza
         por norma alternam com um refrão.                    a escrever a morna da Barca Sagres, tudo indica que o salutar convívio

         18  MARÇO 2008 U REVISTA DA ARMADA
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