Page 30 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (72)
A memória da velha canção
e a jovem poliglota…
Ouvi outra vez, por acaso, aquela velha cia conhecê-lo. Ele convidou a jovem senhora rante toda a missão e em bom português, sem-
canção do Caribe. Senti, como que para a Câmara de Oficiais. A bordo só estava pre com sotaque brasileiro…Este facto elevou
por milagre e por um instante, o calor o “grupo de serviço”, pois depois de uma pro- aquele quase banal acontecimento, ao estatu-
sufocante, o verde das margens – exuberante longada navegação tinham sido concedidas li- to de mito naval.
– e um pôr-do-sol que nunca mais acabava. cenças. Eu próprio estava de “Guarda Médica”,
Fiz há muitos anos uma viagem integrada em àquela força de sete navios. A jovem, soube-se Tenho muitas mais destas imagens que são
missão NATO que abordou a América Central. imediatamente, era a “animadora” de bordo histórias. Muitos outros, que também conhecem
Um dos oficiais presentes na guarnição, ago- daquele monstro do lazer, que nos fazia som- o som do nevoeiro e o abismo infinito preso no
ra com funções de grande responsabilidade bra. Tinha nascido na Rússia e era muito bela. azul do mar, saberão cantar o sorriso dos mari-
e que há muito não vejo, comprou um disco Falava um inglês quase perfeito. Trazia uma nheiros, no país longínquo das suas próprias re-
local, de música alegre, típica daquela zona garrafa de Rum e um quadro com uma foto do cordações. Estes poetas, anónimos, terão certa-
do mundo…Ouviram-se aquelas canções ve- navio. Cumpria a missão de retribuir a cortesia mente muitas outras histórias da vida naval, que
zes e vezes sem conta na Câmara de Oficiais, prestada pelo navio de guerra português. poderiam contar com grande arte, engenho e
durante os longos períodos de navegação. Já sensibilidade. Pois se estas histórias têm algum
sabíamos soletrar as letras, num espanhol com Ocorreu então que, enquanto eu fazia sala mérito é a de demonstrarem que Santos de Casa
sotaque, que se colava à memória. Uma me- com a tal jovem, o Sr.Aspirante A perdia-se em podem fazer milagres, ainda que os próprios he-
mória boa é como um agasalho quente, em dia comentários, com outroAspirante da guarnição, róis raramente disso se convençam…
ventoso. Faz-nos bem, em modos que a ciên- sobre a beleza física da jovem representante do
cia médica ainda tem que desvendar…Com Leste e de como o Doutor parecia feliz…Admo- Fiquei grande amigo daquele aspirante, que
aquela memória, com a música e o ritmo, re- estei-o imediatamente, tem tido uma bela carreira naval. Já comandou
cordei um divertido acontecimento que mar- da forma mais discreta
cou aquela viagem…e a história surgiu, ainda e cortês possível. Dis- um navio e teve a amabilidade de me convidar
mais esta vez… se-lhe que, provavel- para almoçar. No final do almoço, tinha um li-
mente, ela também vro para me oferecer. Era o livro de poesia a par-
Acontece que em determinado porto, aque- percebia português. tir do qual recitara naquela longínqua missão,
la força militar-naval ficou em doca paralela Respondeu-me, cheio
à de outros navios. Navios muito diferentes – de certezas, que não as poesias com o sotaque brasileiro forçado…
de grandes dimensões, com nomes sonantes, podia ser, afinal ela era
como princesa “disto e daquilo”, “maravilha russa…. Mandei que Momentos como estes fazem parte da mística
dos mares”, “beleza cintilante” e outros no- nos servissem um refri-
mes no mesmo tom de grandiosidade. Eram gerante. O grumete da naval e estão na memória de muitos. Classi-
os grandes navios de cruzeiro, que carregados taifa, que não percebia ficam-nos por aquilo que somos. Não somos
de europeus e americanos, cruzam o oceano uma palavra de inglês, melhores, nem piores, somos apenas diferentes,
Atlântico em busca de paragens quentes e be- volta-se então para ela pois a maior riqueza da Marinha está nos seus
las. Ora, cumprindo com a mais correcta tra- e perguntou descon-
dição naval, um determinado Aspirante, que traidamente: homens e mulheres. Esses continuarão sempre a
nesta história designarei como o Sr. Aspirante
A, saiu em missão de cortesia. Assim que o na- -Quer gelo? impressionar quem os procura conhecer.
vio terminou as tarefas da faina, foi incumbido Ela respondeu qua- Que agradável música aquela, que conti-
de levar a tradicional cresta e os cumprimentos se imediatamente e
do comando ao capitão daquele outro navio, num português com nuei a ouvir e que simpática era a Russa Po-
belo, grande e exótico. O Sr. Aspirante A foi e sotaque brasileiro re- liglota. Que bela memória. Que bom foi po-
veio, silencioso. Ao jantar nesse dia, de acor- torquiu: der tê-la vivido e reservado para os dias frios,
do com a sua verdadeira natureza, faladora e -Dois pedácinhos, por favorr…
expressiva, impressionou-nos com o relato da Ouvindo aquilo, o Sr Aspirante A, que tei- da vida… Z
opulência interior do navio, dos múltiplos res- mava em não se calar, mudou várias vezes de
taurantes, piscinas e ginásios… cor. A partir daí a nossa conversa continuou Doc
na língua lusa. A jovem desculpou-se airo-
Ao outro dia, logo após o pequeno-almoço, samente por ter usado inicialmente o inglês,
atendi um telefonema na Câmara de Oficiais. pois não sabia quão diferente seria o português
Era o Sr. Marinheiro de Serviço à prancha, que brasileiro, que ela tinha aprendido, do portu-
dizia então: guês europeu (o que me pareceu então uma
pobre e matreira desculpa). Não falei mais do
- Doutor, está uma senhora a procurar pelo assunto. Contudo, outros dois aspirantes pica-
Sr. Aspirante A. vam incessantemente o Sr Aspirante A, com a
“Russa Poliglota”…
- Pergunte-lhe ao que vem, respondi eu Escusado será dizer que, quando soube des-
cauteloso. ta história, o Imediato determinou que a Câma-
ra precisava de melhorar a sua cultura literária
Responde inquieto o Sr. Marinheiro e para tal foi necessário que o Sr. Aspirante A
- Ela falou em inglês que não é bem o meu recitasse poesia, antes de cada refeição, du-
copo de água ó Sr. Doutor…
Chamei o Sr.Aspirante A. Pedi-lhe para rece-
ber a visita à prancha, uma vez que ela pare-
30 MARÇO 2010 U REVISTA DA ARMADA

