Page 16 - Revista da Armada
P. 16

A MARINHA DE D. SEBASTIÃO (11)

Alienação de valores estratégicos
construídos no Índico
Quando morreu o vice-rei D. Francisco
         Coutinho, em Fevereiro de 1564, a pri-  de portuguesa que cresce na Índia –, a política   assumir o cargo de vice-rei da Índia. Diz-nos
         meira sucessão que foi aberta aponta-   nacional no Oriente parece conformada com a       Diogo do Couto que se discutira em Lisboa a
va para que o governo fosse entregue a D.An-     rotina de carregar pimenta para o reino, atacar   possibilidade do cargo passar para uma figu-
tão de Noronha, que fora capitão de Ormuz e      as naus de Meca ou de Cambaia e pouco mais.       ra que já estava na Índia, mas a decisão final
que partira para o reino em 1562. Só a segunda   Aquilo que fora um jogo de equilíbrios, geri-     do cardeal regente (que substituíra Dª Cata-
carta indicou o nome de João de Mendonça,        do milimetricamente por tantos governadores       rina) recaiu num fidalgo que de lá regressara
inicialmente nomeado como capitão de Mala-       e vice-reis, e que era a chave do poder luso no   há pouco mais de um ano, onde fora capitão
ca, mas que ainda se encontrava em Goa, as-      Oceano Índico, descamba numa postura des-         de Ormuz, e onde acumulara uma enorme
sumindo de imediato o cargo. E a sua primei-                                                       experiência dos assuntos orientais. Chegou a
ra missão diplomática foi receber, de novo, os    Vice-Rei D. Antão de Noronha                     Goa a 3 de Setembro, encontrando o governa-
embaixadores do Samorim, agora com quei-          Galeria dos Vice‑Reis, Velha Goa.                dor doente e incapacitado de o receber com a
xas de que navios portugueses, comandados        leixada e, sobretudo, desatenta de muitos fenó-   pompa necessária, mas não deixaram de se
por Domingos de Mesquita, tinham causado         menos circundantes e transformações políticas     fazer as festas habituais e o cargo foi entregue
grandes danos a mercadores com cartazes de       no Indostão, menos evidentes que a vinda de       sem problemas, com a assinatura dos respec-
livre-trânsito, saídos de Calecut e protegidos   armadas turcas, mas talvez tão ameaçadores        tivos autos lavrados pelo secretário.
pelo acordo que recentemente tinha sido feito    quanto elas. Desbaratavam-se valores estraté-
com o Conde do Redondo.Aoperação levada          gicos adquiridos, sem consciência da gravida-       Esperava-se dele tudo o que era possível de
a cabo por Domingos Mesquita fora ordenada       de desse procedimento.                            uma pessoa bem conhecida em Goa, que dali
pelo próprio vice-rei, como represália de um       João de Mendonça aproveitou o resto da          saíra há pouco tempo e de quem todos sabiam
ataque de embarcações do Malabar, sobre a        estação favorável para despachar os capitães      as qualidades. Mas o momento que se vivia na
qual o Samorim se escusara, dizendo que era      que vinham indicados para as capitanias das       Índia era particularmente mau. É recorrente di-
obra de ladrões e levantados, fora da sua so-    Molucas e de Ceilão, provendo-os dos navios       zer que grassava a corrupção, que toda a gente
berania e controlo. A resposta portuguesa era    necessários e passou toda a estação das chu-      pensava na pilhagem e em enriquecer rapida-
igual, saindo os navios de Goa, como se de re-   vas a tratar da armada da Índia, seguro que       mente sem escrúpulos – é esse o diagnóstico
voltosos e levantados se tratassem, sem contro-  nesse ano viria um novo vice-rei, cumprindo-      de Diogo do Couto –, mas creio que há razões
lo das autoridades portuguesas, e dando caça     -se o hábito das rendições de três em três anos,  mais fundas vindas de décadas anteriores.
a umas dezenas de embarcações que tinham         como acontecia ultimamente. Efectivamente a       Na “Marinha de D. João III (39)” falando da
vindo a Cambaia, descansadas e despreveni-       armada que partira de Lisboa em Março des-        incapacidade portuguesa para ocupar Aden,
das por terem cartaz. É duvidoso que esta po-    se ano de 1564, levava embarcado D.Antão de       quando a cidade lhe era oferecida em 1548,
lítica fosse verdadeiramente do interesse por-   Noronha, com as credenciais necessárias para      referi um processo de “esgotamento estraté-
tuguês, multiplicando o número de inimigos                                                         gico”, que tinha uma componente psicológica
e, sobretudo, impossibilitando os equilíbrios                                                      importante. Estava-se no final do vice-reinado
necessários à boa gestão da presença portugue-                                                     de D. João de Castro e, apesar de se ter obti-
sa na Índia, mas trazia vantagens imediatas a                                                      do um êxito recente no segundo cerco de Diu,
quem fazia as presas, seduzindo muita gente                                                        faltou a energia e a vontade de ocupar uma
que não conseguia ter uma visão global e não                                                       posição que era um objectivo militar desde os
percebia a insustentabilidade desse procedi-                                                       tempos de D. Manuel. Cerca de duas décadas
mento. Neste caso específico, calhou que Do-                                                       depois, esta falta de vontade portuguesa era
mingos de Mesquita chegasse a Goa quando                                                           por demais evidente, com consequências na
ainda ali estavam os embaixadores de Cale-                                                         alienação de um conjunto de valores estraté-
cut, obrigando a que o governador simulasse                                                        gicos importantes que tinham sustentado uma
um severo castigo de prisão para o que afir-                                                       maneira de actuar com sucesso. No tempo de
mava ser um capitão refractário, retirando-o                                                       D. Antão de Noronha mantêm-se os proble-
de imediato, logo que os emissários partiram                                                       mas do Malabar, reacende-se o conflito com
satisfeitos com o desagravo. Tenho ideia que,                                                      Cananor, mantêm-se as armadas de corso no
de parte a parte, ninguém acreditava nestas                                                        Mar Vermelho e em Cambaia, os problemas
atitudes, juramentos, acordos ou tratados, va-                                                     de Ceilão, etc. – acções que permitiam lucros
lendo uma lógica maquiavélica de factos con-                                                       imediatos e directos. Mas, enquanto tudo isto
sumados, onde as vantagens do presente se                                                          acontecia, os sultanatos do Decão – que sempre
sobrepunham a qualquer projecção de médio                                                          viveram pulverizados por uma rivalidade en-
ou longo prazo.                                                                                    démica – conseguiram unir esforços, entrar no
                                                                                                   reino de Vijayanagar, e matar o próprio sobe-
  A Índia portuguesa atravessa um momen-                                                           rano cuja aliança com os portugueses era par-
to em que mingua o pensamento estratégico                                                          ticularmente importante, para os negócios de
e a visão de futuro, a meu ver desde que de-                                                       Goa e de Cochim.Acurto prazo esses mesmos
saparecera a ameaça turca, omnipresente du-                                                        sultanatos conseguiriam virar-se contra os por-
rante toda a primeira metade do século. Com                                                        tugueses, numa acção de que falaremos num
excepção da tomada de Damão, no tempo de                                                           próximo número.
D. Constantino – que se entende sob o ponto
de vista naval e de sustento de uma socieda-                                                                                                          
                                                                                                                               J. Semedo de Matos

                                                                                                                                                        CFR FZ

16 AGOSTO 2010 • Revista da aRmada
   11   12   13   14   15   16   17   18   19   20   21