Page 20 - Revista da Armada
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Saúde Naval em ambiente de guerra
A Marinha no hospital multinacional ROLE 3, Afeganistão
1ª PARTE
POR MARES NUNCA ANTES PORTO DE ABRIGO destacam: o Comando e respectivas áreas fun-
cionais (COM KAIA), um terminal de embar-
NAVEGADOS O ponto de partida do plano de edificação que, infra-estruturas de manutenção e apoio,
de um APOD (Airport Protection Overlay Dis- alojamentos, um ginásio (sem protecção anti-
Quatro de Novembro de 2009, final- trict) em KAIA remonta ao ano de 2006, altura rocket) em construção e inicio de activação,
mente o dia que nunca quis que em que a NATO e as autoridades afegãs acor- um espaço recreativo (sem protecção anti-ro-
chegasse e, ao mesmo tempo, o dia daram a relocalização das facilidades detidas cket) também em construção, dois refeitórios
que sempre desejei com grande ansiedade. a sul, tendo por objectivo o cumprimento de (de nome Supreme), estações de tratamento de
Nove meses depois de ter tido conhecimen-
to que tinha sido nomeada para águas e de lixo, tanques de arma-
participar numa missão de saú- zenamento de combustível, duas
de no Afeganistão, seis meses centrais eléctricas, uma lavandaria
depois do término do apronta- e um HOSPITAL.
mento e quatro meses depois
da partida dos camaradas da pri- Ficámos alojados e a traba-
meira rotação, chegava agora a lhar em KAIA, isolados do caos e
minha vez! alheados do conflito atípico que
No dia da partida com de- se vive no país, contudo, respi-
terminação, travamos uma ba- rávamos o aroma fecal que fazia
talha de emoções: o peso da adivinhar a inexistência de sanea-
responsabilidade da missão, a mento básico em Cabul. No ar
esperança que todos os medos os tons de castanho das nuvens
se esvanecessem no tempo com de pó cobriam as montanhas
a gratificação de podermos ser que nos rodeavam. Com as pri-
úteis através da nossa actuação meiras chuvas ficámos rodeados
clínica num país em conflito, o de neve sobre as montanhas e a
“até logo confiante” aos nossos lama passou a ser constante nos
mais queridos que ficavam va- Despedidas no AT1 de Figo Maduro. nossos trilhos.
zios de certezas cobertos de tristeza porque dois desideratos: 1) prover a ISAF de melhores Apesar dos mais de 20.000 sol-
nos viam partir, não para a Missão Humani- condições de operação e segurança; 2) con- dados afegãos e da NATO que defendem Ca-
tária mas, para a Guerra. Para muitos o re- ceder espaço para a futura expansão da com- bul, gozávamos de um sistema de segurança
visitar de tempos longínquos num mundo ponente civil do Aeroporto. O complexo KAIA frágil, como comprovamos ao longo da nossa
moderno. Norte foi projectado sobre um campo de suca- missão. A exemplo, o ataque com rockets a
Naquela manhã fria e chuvosa, de- KAIA Norte com alvo nas instalações de com-
pois da despedida dolorosa dos nossos
familiares e amigos no AT1 em Figo bustível junto dos alojamentos (felizmen-
Maduro, às 10h48min a partida do te mal sucedido), o atentado suicida de
C-130 rumo ao Afeganistão. No final quatro homens-bombaTalibãs que inva-
das sete horas de barulho ensurdece- diram a entrada e a piscina do hotel Se-
dor dos motores, chegados à Grécia, rena em Cabul, antes de se explodirem,
uma só satisfação, começávamos o causando inúmeras vítimas.
“CONT DOWN”. Invadidos pela sau-
dade, começamos a descontar os dias SEMPRE COMO
que faltavam para o regresso. Depois NO PRIMEIRO DIA
de reparada uma avaria do avião na
Grécia, estávamos de novo no ar para A ameaça era constante mas desde
mais seis horas de ruído até Baku onde logo percebemos que teríamos que nos
pernoitámos. No dia seguinte, seis de abstrair tanto quanto possível dessa reali-
Novembro ao meio dia, chegamos a dade muito embora, o nosso dia a dia se
KAIA (Kabul International Airport). A pautasse por atenção redobrada a tudo
nossa chegada só estava prevista às quanto nos rodeava.Tínhamos a perfeita
14h mas, quando o C130 aterrou em noção de que as nossas chamadas eram
KAIA, já lá estavam os nossos cama- “copiadas”, que também nós estávamos
radas para uma calorosa recepção de a ser vigiados e que estávamos vulnerá-
boas vindas ansiosos de partir no mes- Mapa do Afeganistão. veis pelo facto de termos no Hospital
uma porta aberta para o exterior (as mu-
mo C-130 que nos levou. Apesar de termos ta de material bélico, despojo dos tempos da lheres, por exemplo, só começaram a ser
chegado cedo, o tempo que dispusemos para invasão soviética. revistadas à entrada da base dois meses depois
nos passarem todos os dados do serviço e, de Com um custo total aproximado de 53 mi- da nossa chegada e, os doentes afegãos inter-
nos conduzirem para o labirinto que cons- lhões de euros, o Campo Norte tinha, em Mar- nados possuíam telemóvel permitindo o con-
tituía o local onde íamos ficar alojados du- ço de 2010, capacidade para albergar um efec- tacto dos mesmos com o exterior, filmagens e
rante os quatro meses de Missão foi de ape- tivo de 2700 pessoas e acolher um conjunto gravações vídeo).
nas duas horas. alargado de facilidades, de entre as quais se Por razões óbvias de segurança, estávamos
privados da nossa liberdade. Facilmente olhan-
20 AGOSTO 2010 • Revista da aRmada