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A MARINHA DE D. SEBASTIÃO (22)
D. Sebastião: as vicissitudes de um carácter
Ocarácter de D. Sebastião, certamente
responsável pelas suas decisões polí- Sebastião estava melindrado mas, “tal como na luta contra os mouros. D. Afonso III, o con-
ticas, tem sido alvo de múltiplas análi- os meninos, quando se lhes tirava um brin- quistador do Algarve, mereceu-lhe uma espe-
quedo”, acabaria por acalmar. Enganava-se cial deferência, mas foi devoto de outros ante-
ses, prejudicadas pelas lendas que se seguiram redondamente quanto ao carácter do rei passados mais longínquos do que os recentes
ao desastre de Alcácer Quibir. O trauma desta português. Como observou o embaixador senhores do comércio ultramarino. A questão
batalha, onde pereceu o rei de Portugal e onde de Veneza em Castela (cit. Mª Augusta Lima religiosa tinha grande importância e, por isso,
o país perdeu, senão a sua independência, Cruz), o problema não era apenas a França se interessou pelo Norte de África. Era muito
pelo menos a capacidade autónoma, foi razão nem o ataque à ilha da Madeira, mas o con- rigoroso em questões de costumes e compor-
de um conjunto de histórias fabulosas acerca flito com Madrid e a tutela que o rei de Cas- tamentos públicos: a sobriedade, a dedicação
do jovem soberano. Não é possível compreen- tela queria manter sobre o sobrinho. à causa pública e a abnegação dos cavaleiros,
Naturalmente que esta tensão ibérica ti- eram traços muito fortes que apreciava e cul-
der o período sebástico sem entender o carác-
ter do rei: os seus temores, sonhos, convicções, nha provocado alinhamentos políticos na cor- tivava nele próprio. A corte queixava-se de
maneiras de encarar o mundo, que o rei decidia mudar-se de
terra para terra, sem dar tempo
o governo e a vida. Mas, para o a preparativos e metendo-se ao
fazer, é preciso mergulhar nos
factos, e eles foram deturpados caminho a cavalo, chegando
sempre ao seu destino antes
pela angústia de um povo que das estruturas próprias da
viu desaparecer um número
incontável dos seus filhos, no máquina administrativa, cujos
funcionários viviam em so-
que sempre foi visto como bressalto.
uma aventura guerreira sem
nenhum sentido ou propósito. Detestava viver em Lis-
boa e, sobretudo, no Paço da
Maria Augusta Lima Cruz, Ribeira, que tinha sido man-
numa recente biografia de D.
Sebastião, dá bem a medida dado construir por D. Ma-
nuel para ficar próximo do
deste processo procurando se- movimento dos navios e das
parar o trigo do joio e alcançar
a figura humana de um rei en- fainas de carga e descarga.
Se ao seu bisavô encantava o
tronizado aos 14 anos, rodeado cheiro das especiarias, ele não
de gente a querer influenciar as
suas decisões. o suportava de forma alguma
e recusava aquele pequeno
O necessário casamento do mundo da casa da Índia, dos
rei e a tentativa do consórcio
com Margarida de Valois são mercadores, do bulício cons-
exemplos paradigmáticos das “Plano de Lisboa do Século XVI“, segundo uma gravura de «Theatrum Ur- tante e da promiscuidade do
tensões da época e da influ- bium» de Georg Braun. Legenda: 1 – Paço da Alcáçova (Castelo de S. Jorge), centro sobrelotado do comér-
ência que a coroa espanhola 2 – Paço da Ribeira, 3 – Alfandega, 4 – Ribeira das Naus, 5 – Cais de Pedra do cio do Oriente. Em Abril de
jogava em Portugal. A França, Terreiro do Paço, 6 – Cais do Carvão (Santa Apolónia). 1569 decidiu que não voltaria
país natal da noiva, vivia um momento con- te portuguesa, sabendo-se que Dª Catarina e à Ribeira e mandou restaurar o velho Paço
turbado, com guerras entre católicos e pro- o cardeal D. Henrique representavam, global- da Alcáçova do Castelo de S. Jorge, para sua
testantes, que tinha repercussões directas em mente, duas facções: a rainha pela aproxima- habitação na capital. Disse-se que o fez em
Portugal. Os piratas franceses assolavam o ção a Madrid e o cardeal infante pela autono- duas semanas, com centenas de operários a
comércio ultramarino que demandava Lisboa mia. E digo “globalmente” porque a posição trabalhar de noite e de dia, preparando um
e a coroa gaulesa fazia vista grossa sobre esse de D. Sebastião era muito mais radical que a faustoso aposento de custos elevadíssimos.
assunto, porque assim se via obrigada pelos de D. Henrique, alimentada pelo padre Luis É mais um mito acerca de D. Sebastião: o
difíceis equilíbrios internos entre católicos e Gonçalves da Câmara, seu confessor e con- Paço era sóbrio apesar de confortável, como
protestantes. O problema assumiu proporções fidente, e por um pequeno grupo de nobres escreveu um delegado do Papa que lá ficou
inaceitáveis, levantando-se um conflito diplo- conselheiros, onde se contava D. Álvaro de alojado em 1570. Sobretudo dele se observa-
mático grave quando, em 1566, a ilha da Ma- Castro, o filho do vice-rei da Índia. va toda a cidade e o rio, sem a claustrofobia
Todos estes factos ajudam a compreender da Ribeira e muito mais adequado ao rei de
deira foi atacada e pilhada por um renegado
português ao serviço do almirante huguenote melhor quem foi D. Sebastião, procurando Portugal, como realçou Damião de Góis.
Gaspar de Coligny. Por isso, quando Felipe desvendar a sua personalidade, para além dos A partir de 1570 o rei vive numa ansieda-
II insistiu para que fosse enviada procuração mitos criados depois de Alcácer Quibir. Nestes de crescente que o impele para algo de gran-
ao embaixador de Portugal em Madrid, para primeiros anos de governo, foi um rei que quis dioso: imagina-se a combater os mouros, os
negociar o casamento, o jovem soberano por- romper com um passado recente em múlti- hereges e todos os inimigos do cristianismo
tuguês respondeu que não havia necessidade plos aspectos: renegava a relação tutelar de romano, sabendo que tem de ser ele próprio
de o fazer por ora, acrescentando que não via, Castela, que crescera na regência, e pretendia a construir esse destino. Vive entusiastica-
dapartedaFrança,qualquersinalderemediar cortar com a tradição de uma monarquia mer- mente o espírito tridentino, mas perde-se nele
o incidente pendente. Era mais uma descul- cantilista que comprava e vendia as drogas do com impulsos ingénuos que o maquiavelis-
pa para protelar o assunto, a que o embai- Oriente e do Brasil. Não o inspiravam as figu- mo da época se encarregou de armadilhar.
xador de Espanha, Hernando Carrillo, não ras de D. João III ou D. Manuel e quis ir bus-
dava muita importância, tomando-a por car as suas referências mais além, aos reis da
passageira. Segundo as suas palavras, D. primeira dinastia, que construíram Portugal J. Semedo de Matos
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10 AGOSTO 2011 • REVISTA DA ARMADA