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A MARINHA NO FINAL DA DINASTIA DE AVIS (1)
OS ECOS DE ALCÁCER QUIBIR
Foi com grandes hesitações que retomei vendo o recolhimento a que se obrigara desde arruinada com os custos da própria expedição
a publicação destes pequenos episódios a partida do exército para África. Desolado e e com obras defensivas em Ceuta e Tânger
da Marinha Portuguesa, numa fase em impotente perante os factos, refugiou-se no je- que ficavam fragilizadas na nova conjuntura.
que a mesma iria cair sob a tutela de Filipe II jum e na oração, desejando que as suas preces Alguns sobreviventes lograram alcançar Arzila,
de Espanha. Imaginei que voltaria com um ci- fossem ouvidas pelo Criador, compensando a que se mantinha portuguesa, e daí passaram
clo sobre a marinha filipina, enquadrando os surdez que o sobrinho tivera para com os seus aos portos nacionais – foi por eles que se foram
quase sessenta anos da monarquia dual, com argumentos. Soube da derrota a 13 de Agosto sabendo os horrores da matança –, mas a maio-
muitos episódios que envolveram navios por- e regressou imediatamente a Lisboa, onde che- ria ficou presa em Marrocos, entregue à sua sor-
tugueses, agora num contexto alargado dos gou a 16. Ainda com notícias incertas sobre o te. A pouco e pouco, alguns foram resgatados.
deveres inerentes à vassalagem a um soberano destino do rei, a 22 foi proclamado governador
que era pouco menos que senhor do mundo e sucessor do reino, mas a 24 chegou a infor- Houve porém outras medidas tomadas pelo
inteiro. Mas, em boa verdade, a dinas- novo soberano, que me parecem importantes
tia de Avis não terminou com a morte
de D. Sebastião em Alcácer Quibir, de salientar.
seguindo-se-lhe o reinado do cardeal A primeira foi a de afastar e castigar
rei D. Henrique, que durou até 31 de
Janeiro de 1580. Para além disso, como todos aqueles que, de forma ostensi-
é que deveriam ser enquadrados os va, tinham apoiado a iniciativa régia
movimentos navais que envolveram as da expedição africana. O caso mais
reacções contra o domínio do rei caste- conhecido de todos, e aquele que
lhano, nomeadamente as que tiveram granjeava o maior ódio popular, foi o
D. António Prior do Crato como prin- do secretário Pêro de Alcáçova Car-
cipal protagonista?... É verdade que po- neiro, que, com grande diligência, se
diam resumir-se num ou dois episódios encarregara dos aspectos financeiros
relevantes e nada mais haveria para fa- da guerra. Foi julgado e condenado ao
lar. Podiam englobar um capítulo geral desterro para fora de Lisboa.
do domínio filipino, tanto mais que não
foram além de uma contestação a esse Todavia, as maiores energias políticas
mesmo domínio. A minha opção foi, do rei seriam despendidas na busca
contudo, diferente. de uma solução para a sucessão do
D. Henrique governou durante um trono de Portugal. O cardeal tinha 66
ano e meio e, digamos, a tomada anos de idade e uma saúde precária.
de posse de Filipe II só teve lugar nas Para além disso, a condição de pre-
cortes de Tomar, em 1581. Para além lado obrigara-o a voto de celibato e
disso, estes três anos foram vividos com castidade, pelo que não tinha filhos.
uma intensidade política que era pouco De forma que o futuro do país – que
conhecida das gentes portuguesas, com se presumia ser muito próximo – era
uma enorme vertigem diplomática, re- particularmente incerto. Toda a linha
lacionada com o processo de sucessão sucessória de D. João III desaparecera
de um rei envelhecido e sem filhos. Por Cardeal Rei D. Henrique. com D. Sebastião, recorrendo-se aos
descendentes de D. Manuel, de quem
tudo isso, me pareceu importante identificar mação concreta e terrível de que D. Sebastião D. Henrique era o último filho. E era
esta época num capítulo específico, escolhen- estava morto. Mandava-o dizer Belchior do nos netos do Venturoso que deveria ser
do criar um ciclo próprio designado por “A Amaral, que sepultara o seu corpo na casa do encontrado outro sucessor. Poderia ser
Marinha no final da dinastia de Avis”. Ela co- alcaide mouro de Alcácer Quibir. Durante os Dª Catarina, casada com o duque de Bragan-
meçará agora mesmo, no rescaldo de Alcácer dias 25 e 26, os sinos dobraram ininterrupta- ça e filha do infante D. Duarte; ou Filipe II de
Quibir e no dealbar de múltiplos fenómenos mente a finados por todo o reino, e a 27 foram Espanha, filho de Isabel de Portugal. A maioria
que assolaram a sociedade portuguesa na se- quebrados os escudos, num gesto de pública das restantes hipóteses era muito mais frágil.
quência da fatídica batalha, prolongando-se até aceitação e reconhecimento da morte do sobe- Exceptuava-se D. António Prior do Crato, que
às vésperas das cortes de Tomar, quando Filipe rano. D. Henrique foi aclamado rei de Portugal era filho do infante D. Luís. Mas marcado pelo
II foi aclamado e jurado como rei de Portugal. em 28 de Agosto de 1578, na igreja do Hospital estigma da bastardia que o arredava das pre-
Mas falemos então desse momento terrível de Todos os Santos, em Lisboa. tensões mais óbvias ao trono. D. Henrique,
que se segue à tragédia, na fase em que as Na sua acção governativa, sobressai de ime- porém, não arredou de todo a possibilidade
pessoas ainda não tomaram verdadeira cons- diato a preocupação com os cativos e com o de ter herdeiros e essa foi a sua primeira prio-
ciência do que lhes aconteceu, e adormecem seu resgate. Ficaram nos campos de Alcácer ridade. Precisava apenas de obter a dispensa
num estado global de apatia de que não que- milhares de portugueses, fidalgos e populares, papal para poder casar e ter filhos. Mas, como
rem emergir. A batalha teve lugar a 4 de Agos- agora perdidos pelas masmorras em suplícios veremos, essa seria uma das suas derrotas di-
to – como é sabido – e as notícias da derrota que urgia abreviar. Foram disso encarregues os plomáticas.
chegam a Lisboa no dia 11, embora sem os frades da Ordem da Santíssima Trindade para
detalhes suficientes sobre o que sucedera a D. a redenção dos cativos (trinitários), disponibili- J. Semedo de Matos
Sebastião. D. Henrique estava em Alcobaça, vi- zando-se as verbas possíveis de uma fazenda CFR FZ
N.R.
O autor não adota o novo acordo ortográfico.
REVISTA DA ARMADA • FEVEREIRO 2013 13

