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NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA (24)

O Coronel da Marinha...

 “...Nos vapores da cozinha a negra Fe-      Gostei porque a essência do ser militar    Tive o desdém de alguns, mas mantive a
lizminha arregaçava os olhos. Exugava a     não está na arte da guerra… Está, disso     amizade de muitos… Sobrevivi sempre
lágrima sempre tarde. Já a gota tombara     estou certo, na grande humanidade que       a escrever a vida com um olhar que não
na panela. Era certo e havido: a lágrima    a condição militar, pelas muitas expe-      é bom nem mau… mas é meu, apenas
se adicionando nas comidas. Tanto que a     riências e desconfortos, impõe a quem       meu… Esse será o legado de que mais
cozinheira nem usava tempero nem sal. O     ousou vestir uma farda… Este Oficial        me orgulho ao longo destes anos…
sargento provava a comida e se pergunta-    era exemplo disso. A sua alma inspira-
va porquê tão delicados sabores:            va glórias antigas, tão nítidas hoje como    Alguém me dizia há bem pouco tempo…
                                            ontem, que davam sentido à sua vida de       − Pessoas como tu não existem…
 É comida temperada a tristeza.             um modo que nem eu próprio consegui          É verdade. Pessoas como eu não exis-
 Era a invariável resposta de Felizminha…   totalmente compreender…                     tem, têm que ser criadas num proces-
 In “Contos do Nascer da Terra”,                                                        so industrial pouco reprodutível (… e
Mia Couto.                                   Mas fiquei impressionado. Fiquei im-       nada aconselhável). Uma mistura ape-
 Chegou amparado… Tinha com ele             pressionado com a ternura que emana-        nas acessível a Elfos e Gnomos, que são
uma filha, senhora de meia-idade. Nun-      va das suas histórias (à maneira do Mia     seres místicos da Terra, inspirados por
ca deixou de me tratar                      Couto de que tanto gosto). Impressio-
por “V. Exa. Senhor                         nei-me nesse dia e nos restantes. Voltei                         perigosos cantares
Coronel”, e era tanto                       a ser eu, mesmo naquele consultório                              de Sereia, que são
o respeito demonstra-                       ainda estranho, mesmo nestes hábitos                             entidades do Mar.
do naquela expressão                        diferentes, mesmo sem o ar do mar…                               São precisas pane-
que nunca o contra-                         em que me alistei, quando ainda não                              las grandes onde se
riei… com o nome do                         sentia as entranhas a saber a sal e o azul                       misturam, há uma,
meu verdadeiro pos-                         como a cor do mar…                                               poemas nunca ditos,
to… corrigir aquele                                                                                          letras esquecidas, de-
cavalheiro pareceu-                          Li os livros que já há muito tempo não                          sencantos passados
-me inadequado, uma                         conhecia… Senti o prazer noutros poe-                            de um tempo longe
ingratidão…                                 mas que não sabia. Voltei a ser eu, na-                          e perto e, por fim,
 Antigo Oficial do                          quele dia… Temperei a minha vida com                             vozes de uma espe-
Exército Português, ti-                     outras cores… Os sabores da alegria…                             rança nunca perdi-
nha conhecido a Índia                                                                                        da. Depois é preciso
Portuguesa e Moçam-                          Alguns dos meus novos leitores não                              mexer e mexer tudo
bique. Tinha vivido                         conhecem o meu passado de incipiente                             com força na alma…
em Timor. Agora nem                         cronista. Acharão certamente estranhas                           A força dos que estão
a rebelde hipertensão                       (… porventura desusadas e até agressi-                           e dos que já partiram.
arterial, nem o con-                        vas) as minhas histórias. A verdade é                            A força dos que ainda
sequente Acidente                           que nunca vivi só de pão e água. As                              estão para vir. A for-
Vascular Cerebral lhe                       palavras são o meu espírito e o meu es-                          ça dos que acreditam
tinham roubado a dig-                       pírito está nestas palavras. Conheci por                         mesmo naquilo que
nidade… Vinha expe-                         dentro o vazio e a solidão. Perdi o sor-                         nunca viram, mas já
rimentar o novo Hospital, afinal morava     riso tantas vezes como o reconquistei…                           sentiram… Finalmen-
no Lumiar, era mais perto do que a Estrela                                              te, é preciso ser generoso no tempero
antiga.                                                                                 com lágrimas de Fada Madrinha, que
 Puxei-lhe pela memória. De todo o lado                                                 são parecidas em tudo com as nossas,
exprimiu saudade, mas trazia Goa com                                                    mas muito mais puras, só comparáveis
particular afeição… Só não gostava de                                                   às lágrimas das crianças…
tanto arroz, “que o rancho não era como                                                  E só assim, após um tão difícil e de-
hoje” e sorriu… Sorriu enquanto descre-                                                 licado processo de criação, porventura
veu a ambiência de um Portugal antigo,                                                  se encontrará alguém como eu, que se
vasto, grande como o Mundo…Tão gran-                                                    reconhece no ruído ensurdecedor que
de que desafia a compreensão de nova-                                                   existe no silêncio de cada um. Só as-
tos, como eu…                                                                           sim se acompanha o sol dos trópicos
 A filha, também presente na consulta,                                                  que ainda brilha na face daquele meu
não parava de sorrir. Talvez já tivesse                                                 novo paciente, só assim se conhece
ouvido as histórias de como o pai en-                                                   o sabor do arroz de Goa, só assim se
joava nas viagens navais, daquela vez                                                   acredita que tudo vale a pena… Só as-
que adormeceu debaixo da árvore er-                                                     sim vale a pena ser agora um “Coronel
rada, em Timor, ou da ansiedade que                                                     da Marinha…”.
sentiu aquando da invasão da Índia…
Eu ouvi enquanto o tempo mo permitiu                                                                                              Doc
e gostei…                                                                                      REVISTA DA ARMADA • JUNHO 2013 31
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