Page 31 - Revista da Armada
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NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA (24)
O Coronel da Marinha...
“...Nos vapores da cozinha a negra Fe- Gostei porque a essência do ser militar Tive o desdém de alguns, mas mantive a
lizminha arregaçava os olhos. Exugava a não está na arte da guerra… Está, disso amizade de muitos… Sobrevivi sempre
lágrima sempre tarde. Já a gota tombara estou certo, na grande humanidade que a escrever a vida com um olhar que não
na panela. Era certo e havido: a lágrima a condição militar, pelas muitas expe- é bom nem mau… mas é meu, apenas
se adicionando nas comidas. Tanto que a riências e desconfortos, impõe a quem meu… Esse será o legado de que mais
cozinheira nem usava tempero nem sal. O ousou vestir uma farda… Este Oficial me orgulho ao longo destes anos…
sargento provava a comida e se pergunta- era exemplo disso. A sua alma inspira-
va porquê tão delicados sabores: va glórias antigas, tão nítidas hoje como Alguém me dizia há bem pouco tempo…
ontem, que davam sentido à sua vida de − Pessoas como tu não existem…
É comida temperada a tristeza. um modo que nem eu próprio consegui É verdade. Pessoas como eu não exis-
Era a invariável resposta de Felizminha… totalmente compreender… tem, têm que ser criadas num proces-
In “Contos do Nascer da Terra”, so industrial pouco reprodutível (… e
Mia Couto. Mas fiquei impressionado. Fiquei im- nada aconselhável). Uma mistura ape-
Chegou amparado… Tinha com ele pressionado com a ternura que emana- nas acessível a Elfos e Gnomos, que são
uma filha, senhora de meia-idade. Nun- va das suas histórias (à maneira do Mia seres místicos da Terra, inspirados por
ca deixou de me tratar Couto de que tanto gosto). Impressio-
por “V. Exa. Senhor nei-me nesse dia e nos restantes. Voltei perigosos cantares
Coronel”, e era tanto a ser eu, mesmo naquele consultório de Sereia, que são
o respeito demonstra- ainda estranho, mesmo nestes hábitos entidades do Mar.
do naquela expressão diferentes, mesmo sem o ar do mar… São precisas pane-
que nunca o contra- em que me alistei, quando ainda não las grandes onde se
riei… com o nome do sentia as entranhas a saber a sal e o azul misturam, há uma,
meu verdadeiro pos- como a cor do mar… poemas nunca ditos,
to… corrigir aquele letras esquecidas, de-
cavalheiro pareceu- Li os livros que já há muito tempo não sencantos passados
-me inadequado, uma conhecia… Senti o prazer noutros poe- de um tempo longe
ingratidão… mas que não sabia. Voltei a ser eu, na- e perto e, por fim,
Antigo Oficial do quele dia… Temperei a minha vida com vozes de uma espe-
Exército Português, ti- outras cores… Os sabores da alegria… rança nunca perdi-
nha conhecido a Índia da. Depois é preciso
Portuguesa e Moçam- Alguns dos meus novos leitores não mexer e mexer tudo
bique. Tinha vivido conhecem o meu passado de incipiente com força na alma…
em Timor. Agora nem cronista. Acharão certamente estranhas A força dos que estão
a rebelde hipertensão (… porventura desusadas e até agressi- e dos que já partiram.
arterial, nem o con- vas) as minhas histórias. A verdade é A força dos que ainda
sequente Acidente que nunca vivi só de pão e água. As estão para vir. A for-
Vascular Cerebral lhe palavras são o meu espírito e o meu es- ça dos que acreditam
tinham roubado a dig- pírito está nestas palavras. Conheci por mesmo naquilo que
nidade… Vinha expe- dentro o vazio e a solidão. Perdi o sor- nunca viram, mas já
rimentar o novo Hospital, afinal morava riso tantas vezes como o reconquistei… sentiram… Finalmen-
no Lumiar, era mais perto do que a Estrela te, é preciso ser generoso no tempero
antiga. com lágrimas de Fada Madrinha, que
Puxei-lhe pela memória. De todo o lado são parecidas em tudo com as nossas,
exprimiu saudade, mas trazia Goa com mas muito mais puras, só comparáveis
particular afeição… Só não gostava de às lágrimas das crianças…
tanto arroz, “que o rancho não era como E só assim, após um tão difícil e de-
hoje” e sorriu… Sorriu enquanto descre- licado processo de criação, porventura
veu a ambiência de um Portugal antigo, se encontrará alguém como eu, que se
vasto, grande como o Mundo…Tão gran- reconhece no ruído ensurdecedor que
de que desafia a compreensão de nova- existe no silêncio de cada um. Só as-
tos, como eu… sim se acompanha o sol dos trópicos
A filha, também presente na consulta, que ainda brilha na face daquele meu
não parava de sorrir. Talvez já tivesse novo paciente, só assim se conhece
ouvido as histórias de como o pai en- o sabor do arroz de Goa, só assim se
joava nas viagens navais, daquela vez acredita que tudo vale a pena… Só as-
que adormeceu debaixo da árvore er- sim vale a pena ser agora um “Coronel
rada, em Timor, ou da ansiedade que da Marinha…”.
sentiu aquando da invasão da Índia…
Eu ouvi enquanto o tempo mo permitiu Doc
e gostei… REVISTA DA ARMADA • JUNHO 2013 31