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REVISTA DA ARMADA | 481

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                                                                                                                                   te”4? Mesmo que a base das suas tripulações
                                                                                                                                   fosse constituída por pescadores ou outros
                                                                                                                                   marítimos, com uma razoável experiência ma-
                                                                                                                                   rinheira, não se passa facilmente das artes da
                                                                                                                                   pesca para as manobras de combate. É certo
                                                                                                                                   que já não estaríamos propriamente perante a
                                                                                                                                   frota de Ibn Mardanix e que as “nove Galés de
                                                                                                                                   Mouros” ao largo de Lisboa mencionadas por
                                                                                                                                   Duarte Galvão poderiam mais não ser do que
                                                                                                                                   navios mercantes reconvertidos para o saque,
                                                                                                                                   uma vez que na altura não seria raro o comér-
                                                                                                                                   cio e a pirataria/corso andarem de mãos dadas.
                                                                                                                                   O facto é que, acreditemos ou não na existência
                                                                                                                                   do mítico “Almirante”, parece ter, efectivamen-
                                                                                                                                   te, ocorrido uma vitória naval cristã ao largo de
  Fig. 2 – Navios normandos (tapeçaria de Bayeux, séc. XI). Ligeiros e de fundo achatado, foram empregues nas razias vikings       Lisboa (tradicionalmente conhecida como Ba-
que assolaram a Península Ibérica nos séculos IX e X, tendo, ainda, servido de transporte aos príncipes escandinavos que partici-  talha do Cabo Espichel) por volta de 1180, ou
param nas Cruzadas. É possível que alguns navios deste tipo tenham ficado em Portugal para integrar a incipiente e heterogénea
marinha nacional.
                                                                                                                                   não tivesse ela sido mencionada pelo cronista
                                                                                                                                   árabe Ibn Khaldun, que refere o apresamento
dois principais portos da costa ocidental, que vertente estratégica naval durante os trinta de vinte (!) navios sarracenos. Parece-nos, pois,
garantiam a abertura comercial ao exterior e a anos subsequentes à conquista de Lisboa? A que se terá registado um acontecimento digno
entrada de mercadorias essenciais (alimentos, resposta a esta pergunta está intimamente li- de nota. Mesmo tendo em conta que a tradi-
armas) à continuação do esforço militar e à so- gada a duas lendárias e, até certo ponto, obs- ção portuguesa poderá ter exagerado o feito
brevivência do jovem país.                 curas figuras daquele período, cuja ligação – hipótese aparentemente desmentida pela
Com o movimento das cruzadas no seu auge, entre si será, possivelmente, maior do que escrita do cronista árabe – estaremos, porven-
ficava, além disso, garantido um importante poderemos, à partida, imaginar: Geraldo- tura, num patamar superior ao das “obscuras
ponto de escala para as frotas de cruzados que -Sem-Pavor e D. Fuas Roupinho.                                                      acções navais” referidas por Carlos Selvagem.
se dirigiam para a Terra Santa, o último por- Comecemos pelo segundo: a figura de D. Fuas Se os feitos extraordinários relatados das cró-
to em terras cristãs antes de se lançarem no Roupinho, de cuja existência não se conhecem nicas devem ser, por norma, encarados com a
Mediterrâneo e na incerta passagem junto às provas documentais – tendo o seu nome sur- devida reserva, não é menos verdade que uma
costas dos infiéis. As visitas destas expedições gido numa tradição oral apenas registada no abordagem cegamente iconoclasta poderá fa-
armadas revelar-se-iam um apoio fundamen- século XVI –, e que se supõe tratar-se de um zer com que se desprezem acontecimentos de
tal em diversas ocasiões (como, de resto, já se tal Fernão Gonçalves conhecido como o “Fa- certa forma relevantes no contexto em causa.
tinham revelado na tomada de Lisboa), que roupim”, mencionado no Livro de Linhagens Como poderia, então, esta vitória ter ocorri-
não foram, obviamente, desprezadas pelos do conde D. Pedro, materializa a reacção de D. do se o lado português não dispusesse já de
nossos primeiros reis.                     AfonsoHenriquesàsincursõesnavaismouriscas um conjunto de navios (galés ou outros) pre-
Garantida a posse de uma potencial base de sobre Lisboa. Ora, de acordo com a tradição, D. parados para a guerra? A menos que se tivesse
operações, poderíamos, a partir daqui, ter as- Fuas (mantenhamos, por conveniência de esti- tratado de uma esquadra estrangeira (de cuja
sistido a um notório desenvolvimento da acti- lo, esta onomástica) teria sido mandado, pelo hipotética vinda ou passagem não se conhece
vidade naval portuguesa (haveria meios para Rei, a Lisboa “armar
tal?), de modo a proteger o comércio maríti- Galés, e que fosse elle
mo e as rotas dos cruzados, mas a verdade é por Capitão, para ir pe-
que D. Afonso Henriques parece ter-se virado leijar com os mouros”.
para o interior da Península até ao desastre Ora, perguntamos nós,
de Badajoz (1169), altura em que, provavel- quanto tempo seria
mente por efeitos do ferimento que recebera preciso para aprontar
na perna (que o impediria de voltar a mon- uma pequena (?) for-
tar), se nota o esmorecimento na sua activi- ça de galés3? Para dar
dade militar. Depois de repelida uma incursão uma resposta imediata
moura em Santarém (1171), estabelece uma ao avistamento do ini-
trégua com os Almóadas, que dura até 1178. migo, os navios teriam,
Nesse ano é o infante D. Sancho a atravessar forçosamente, de exis-
o Guadiana e a avançar até Sevilha, saquean- tir em estado de pron-
do os seus arredores. Como suposta represá- tidão para combate, a
lia, uma frota comandada por Mohamed Ibn menos que as referidas
Mardanix entra no Tejo em 1179 e ataca os “galés” mais não fos-
arredores de Lisboa. Terá sido, possivelmen- sem do que algumas
te, aí que o Rei reconheceu a necessidade de barcas armadas à pres-
armar navios para a defesa dos portos e da sa. Mas se assim fosse,
costa, pois, em 1179, os forais de Santarém, estariam estas barcas
Lisboa e Coimbra concedem foro de cavaleiro à altura de enfrentar
ao alcaide, espadeleiros, proeiros e petintal navios especificamen-
de cada barca de guerra.                   te concebidos para
 Mas será, de facto, credível que o nosso  o corso? E o adestra-        Fig. 3 – Navio dos cruzados (iluminura do séc. XIII). A iconografia da época é muito estilizada,
                                           mento do pessoal que       mas percebe-se que se trata de um navio acastelado, bojudo e de alto bordo, típico do norte da
Fundador ignorasse quase por completo a                               Europa, mais adequado à navegação atlântica do que as galés.

18 JANEIRO 2014
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