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REVISTA DA ARMADA | 481

registo), a força de combate teria de começar      Fig. 4 – Galés árabes (ilustração de um manuscrito do séc. XI). Navio combatente por excelência, utilizada no abalroa-
a ser preparada uns anos antes. Seriam navios    mento e abordagem de navios inimigos, com ou sem esporão, a galé medieval é, muitas vezes, uma versão simplificada
deixados pelos cruzados ou tomados ao ini-       das trirremes gregas e romanas.
migo durante a conquista de Lisboa? Poucos
admitirão a hipótese de se tratar de navios      Poderíamos estar perante meras acções de          passado para o Norte de África e escrito ao rei
construídos de raiz, uma vez que só durante o    retaliação, com impacto pouco mais do que         a partir da região do Suz, em Marrocos, incen-
reinado de D. Sancho II se regista a existência  psicológico. Ou seria algo de mais profundo,      tivando-o a enviar navios armados e a tomar
de estaleiros reais (recuperação das taracenas   que vinha sendo preparado desde há algum          aquelas terras, acção em que poderia contar
muçulmanas de Lisboa?) e a construção siste-     tempo? Recuemos alguns anos e revisitemos         com a sua colaboração. Esta missiva teria sido
mática de galés. No entanto, parece-nos per-     o celebérrimo Geraldo-Sem-Pavor, numa al-         interceptada pelos agentes do Califa e custa-
feitamente plausível que as referidas tarace-    tura em que parece ter, definitivamente, per-     do a vida a Geraldo (por volta de 1176), mas
nas pudessem ter prosseguido a sua produção      dido os favores reais:                            se acreditarmos nesta versão podemos admi-
após a queda de Lisboa em mãos cristãs, even-
tualmente com o recurso a artífices mouros       Fig. 5 – Batalha naval do Cabo Espichel, 1180 (quadro de Luigi Monti, Museu de Marinha)
ou moçárabes, mesmo que fosse apenas para
produzir um punhado de galés ou para reparar      Pouco tempo depois da derrota de Badajoz         tir a hipótese de D. Afonso Henriques consi-
as que tinham sido capturadas (ou não fosse,     parece ter havido um desentendimento entre        derar, efectivamente, um ataque ao Norte de
nestes tempos, a captura muito mais lucrativa    Geraldo e o seu rei, que o teriam levado a di-    África pelo menos quatro anos antes da bata-
do que a destruição, como se depreende, aliás,   rigir-se a Sevilha e a oferecer os seus serviços  lha do Cabo Espichel e da primeira expedição
dos relatos dos combates navais).                ao califa Yusuf I. Vários relatos mencionam a     de D. Fuas Roupinho. E do ponto de vista es-
                                                 posterior troca de correspondência entre este     tratégico havia várias vantagens em optar por
CEUTA: UMA FALSA PARTIDA?                        aventureiro e D. Afonso Henriques, sugerindo      esta modalidade de acção:
                                                 a sua utilização como agente duplo, o que, de     ■ Neutralização de um reconhecido “ninho” de
 Após a reparação da esquadra e o seu refor-     resto, não era invulgar para a época. Interes-
ço com as galés apresadas, D. Fuas terá, então,  sante é a versão segundo a qual Geraldo teria       piratas/corsários sarracenos;
percorrido a costa de Portugal e do Algarve.                                                       ■ Corte da passagem de reforços e de abas-
Não tendo encontrado o inimigo, passa o Es-
treito e entra na baía de Ceuta, de onde se
sabia que partiam os navios que auxiliavam as
incursões sarracenas nas tentativas de recu-
peração de Lisboa e Santarém, apresando os
navios inimigos. Se esta incursão a Ceuta foi,
efectivamente, levada a cabo, Portugal teria
de dispor de uma frota suficientemente forte
para atacar um porto conhecido como ponto
de partida das armadas dos corsários bar-
barescos (sendo quase certo que neste caso
particular haveria, adicionalmente, informa-
ções seguras da preparação de uma ofensiva).
Não nos parece credível que o ataque àquele
porto pudesse ter ocorrido por mero acaso, na
sequência do patrulhamento da costa ociden-
tal da Península. Sendo plausível que o nosso
“Primeiro Almirante” quisesse, primeiro, cer-
tificar-se de que não haveria nas imediações
restos da esquadra inimiga, não nos podemos
esquecer que, com as condições de navegação
da época, dificilmente uma frota conseguiria
manter uma patrulha contínua da costa du-
rante muito tempo, pelo que o objectivo teria
de estar, à partida, bem definido.

 Uma segunda incursão, que, segundo al-
guns autores, poderá ter sido meramente aci-
dental5, já não seria tão bem sucedida, uma
vez que os mouros estariam, desta vez, bem
preparados. Enfrentando 54 galés inimigas, D.
Fuas terá sucumbido neste combate desigual,
em que teriam sido perdidas 11 galés portu-
guesas. A acreditarmos nestes números, es-
tamos já perante forças navais de dimensões
respeitáveis.

 Quaisquer que tenham sido os pormenores
destes combates, o mais importante aqui é a
referência ao facto de a frota portuguesa se
ter aventurado em águas controladas pelo
Mouro, flagelando-o no seu próprio terreno.

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