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REVISTA DA ARMADA | 481
tecimentos vindos do Norte de África, iso teria incluído na volumosa expedição naval e o Algarve, persistindo apenas alguma inde-
lando deste modo, os reinos mouros do Sul quarenta galés e galeotas portuguesas, acom- finição quanto aos limites orientais das terras
da Península; panhadas de vários navios de transporte de situadas a Sul do Tejo. Neste espaço destaca-se
■ Pressão sobre a retaguarda inimiga; víveres e munições. Aliás, é neste reinado que a posse dos três mais importantes portos da
■ Corte do mais provável eixo de invasão da nos surgem os primeiros indícios da existência costa ocidental da Península: Lisboa, Alcácer
Península; de uma marinha organizada, pois o “Inquisitio do Sal e Silves, que garantem a abertura ao ex-
■ Controlo da navegação no Estreito. de Relego Ulixbonẽ”, de 1210, menciona a fi- terior e o apoio às operações navais.
Além dos motivos atrás enunciados, não es- gura do “pretor dos navios”.
queçamos que o Norte de África fazia parte Estão, por outro lado, encontrados dois im-
do antigo espaço romano-cristão conquistado O COMÉRCIO COM O NORTE portantes eixos de expansão marítima: o eixo
pelos muçulmanos, estando, portanto, na con- DA EUROPA comercial com o Norte da Europa e o intencio-
tinuidade da reconquista cristã da Península. nado estabelecimento de uma testa-de-ponte
Outros motivos, como o travar da expansão Na edificação do estado português, o movi- no Norte de África (embora a falta de docu-
castelhana para Sul não estariam, na altura, na mento das Cruzadas não serviu apenas para mentação não nos permita comprovar taxati-
ordem das preocupações do rei português, uma fornecer apoio militar à tomada de cidades vamente este último).
vez que todo o Sul da Península estava, ainda, costeiras. Tendo permitido a reabertura do
em aberto, como o demonstram as atrás referi- Mediterrâneo, contribuiu decisivamente para É, de facto, curioso que, menos de meio sécu-
das campanhas conduzidas pelo infante D. San- o retomar do tráfego comercial entre este e o lo após a sua fundação, o nosso País visse, já, es-
cho na bacia do Guadalquivir. Também a even- Norte da Europa, do qual Portugal se tornou boçados o seu espaço físico continental e uma
tual passagem da frota castelhana para Oeste um natural entreposto, ficando, assim, garan- envolvente estratégica que se manterão, grosso
do Estreito não seria, por ora, uma preocupação tida a sua viabilidade como estado. modo, com algumas variantes moldadas pelo
contexto histórico, nos cinco séculos seguintes.
Mapa 1 – A Reconquista Cristã da Península Ibérica Como atrás foi referi-
do, a coroa portuguesa Nada disto teria sido possível sem a adopção
de monta, uma vez que só em 1262 se regista- dependia do abaste- de uma política marítima consistente e sem
ria o emprego de uma armada castelhana, por cimento externo de uma decisiva aposta na edificação e utilização
ocasião da tomada de Cádiz. No entanto, tal não matérias-primas e ar- de meios navais.
retira o valor estratégico daquele ponto de pas- tefactos para sustentar
sagem obrigatório de toda a navegação que cir- a sua guerra contra os Moreira Silva
culava entre o Atlântico e o Mediterrâneo, com mouros e para manter CFR
destaque para as frotas dos cruzados. a sua independência
face aos reinos vizi- N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico.
Temos, então, bons motivos para crer na nhos de Leão e Cas-
possibilidade de D. Afonso Henriques ter em- tela. Por outro lado, a Notas
pregado alguns anos do seu reinado na prepa- fundação de Portugal 1 É de referir, também neste período, o oferecimento
ração de uma frota suficientemente forte para enquadra-se cronolo-
um desembarque em terras marroquinas. gicamente num perío- de “naves portuguesas” à frota galega do arcebispo D.
E quatro ou cinco anos parecem suficientes do de ressurgimento Diego Xelmírez.
para, ao ritmo de dois ou três navios por ano, das cidades europeias
constituir uma esquadra de uma dezena de e de ascensão da clas- 2 Tendo a frota cristã sido, essencialmente, composta
navios combatentes, suficiente não só para se burguesa, não só por reacção dos povos às de navios dos cruzados, não deixa de ser interessante a
enfrentar pequenos grupos de corsários mas arbitrariedades feudais, mas também porque menção feita na carta do cruzado Osberno à morte do
também para enquadrar uma frota de assalto. os reis, pressionados com as pesadas despesas “Rector Galeata Regis” numa porta do castelo. Seria esta
de guerra, se viram na contingência de recorrer figura – eventualmente identificada como o célebre
Seja como for, a intenção de estabelecer uma aos préstimos dos mercadores, cedendo-lhes, Martim Moniz – o comandante de uma verdadeira es-
testa-de-ponte do outro lado do estreito, se a em contrapartida, amplos privilégios. quadra de galés do Rei?
havia, ter-se-á gorado com a derrota da frota Não é, assim, de estranhar que, em 1184,
de D. Fuas Roupinho ao largo de Ceuta. Será D. encontremos mercadores portugueses em 3 Empregamos o termo “galés” com uma certa reser-
Sancho I a prosseguir, de certo modo, esta es- Bruges, local de venda dos afamados têxteis va, uma vez que só a partir do reinado de D. Sancho II
tratégia ofensiva a Sul, não no Norte de África flamengos, onde, seis anos mais tarde, se encontramos documentos que comprovam a utilização
mas no reino dos Algarves, com a conquista de fundará a primeira feitoria lusa. Em 1203, e a construção daquele tipo de navios. É possível que
Silves, em 1188. Aproveitando, para o efeito, a encontramo-los também em Inglaterra, bus- os cronistas quinhentistas aplicassem a designação de
passagem de uma frota de cruzados (53 naus), cando lãs e metais. “galé”– o navio combatente por excelência –, de um
Na transição entre os séculos XII e XIII, Portu- modo genérico, a qualquer navio armado para a guerra.
gal não é, definitivamente, um estado isolado.
Charneira entre o Mediterrâneo e a Europa 4 De acordo com as crónicas, D. Fuas teria assumido o
ocidental, está, já, em diálogo aberto com es- comando da frota na altura em que seria alcaide de Por-
tes dois mundos, no meio dos quais forjará a to de Mós, onde repelira um ataque mouro. Teria tido
sua identidade histórica. ao seu dispor um certo número de barcas armadas com
as quais já teria enfrentado algumas incursões de piratas
DEFINIÇÃO DO ESPAÇO sarracenos? É certo que falamos de um comandante
GEOGRÁFICO E ESTRATÉGICO militar que poderá não ter tido intervenção directa na
NACIONAL manobra dos navios, mas teria forçosamente de ser
possuidor de alguns conhecimentos que o habilitassem
No início do reinado de D. Sancho I, Portugal a enfrentar a realidade do combate no mar, mesmo que
tem já grosseiramente definido aquele que este, na sua forma mais rudimentar, se baseasse nas téc-
será o seu território continental, entre o Minho nicas de abordagem.
5 De acordo com Frei António Brandão, teria sido um
temporal a empurrar os navios, na altura ao largo do
Algarve, para lá do Estreito. Consideramos, no entanto,
algo duvidoso que os mouros tivessem a sua esquadra
concentrada naquele porto à espera que um fortuito
golpe de vento ou de mar fizesse cair nas suas mãos a
frota cristã (a menos que o objectivo fosse, inicialmen-
te, o lançamento de uma operação naval ofensiva con-
tra as costas cristãs), tal como nos parece muito pouco
provável que, mesmo empurrados por ventos fortes, os
navios se tivessem visto forçados a passar pela estreita
abertura que dá acesso ao Mediterrâneo, em vez de ar-
ribar a uma zona safa da costa.
20 JANEIRO 2014