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REVISTA DA ARMADA | 551
ESTÓRIAS 59
ANTES VOMITÁ-LOS QUE DÁ-LOS
s viagens de instrução de cadetes da Escola Naval são momentos foi morango. Para além de ser um fruto naturalmente agradável, e
Aem que todo o curso está junto. Apesar da observação constante como tal apetecível, não é muito comum a bordo, por se degradar
dos ofi ciais da Escola Naval embarcados, e dos ofi ciais de bordo, com com facilidade. Adicionalmente, é sabido por todos os marinhei-
vista à avaliação do desempenho dos cadetes no decurso da viagem, ros que os despenseiros têm plantações secretas de macieiras
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a tensão resultante das frequências e exames já desapareceu ou nos seus paióis, só assim se explicando a abundância desta fruta a
ainda está sufi cientemente longínqua. Costumam proporcionar esta- bordo, cognominada de “pêro naval”.
dias em portos distantes, ou pelo menos desconhecidos. Ocorrem no Para quebrar a monotonia, é habitual atribuir outras designações
verão, um período de natural distensão sica e mental. Os cadetes às maçãs, que invariavelmente terminam as refeições. Assim, uma
são jovens. O cocktail explosivo que resulta da mistura de todos estes grande maçã amarela é designada como ananás. Uma pequena
ingredientes potencia o surgimento de diversos episódios dignos de maçã vermelha passa a morango. Se for uma grande maçã verme-
fi gurar nas estórias de marinheiros. Esta
cai neste capítulo.
O bicho cadete é também conhecido
como formiga branca. Esta denominação
resulta da fusão entre a cor do uniforme
de passeio de tempo quente, u lizado
normalmente nas recepções a bordo
durante as estadias nos portos, conju-
gado com o ape te voraz pico da idade,
do esforço sico resultante das tarefas a
navegar, bem como da frequente ausên-
cia de ape te que caracteriza muitos
marinheiros quando a navegar. Outra
caracterís ca destes insectos é a capa-
cidade de rapidamente devastarem as
zonas por onde passam, o que também
ocorre com as mesas das recepções logo
que os cadetes têm ordem para se apro-
ximarem das iguarias nelas depositadas.
Qualquer comandante que queira ter
sucesso numa recepção a bordo com
cadetes, nomeadamente garan ndo que
os convidados têm acesso à comida, tem
de assegurar que o bicho cadete fi ca confi nado a uma mesa espe- lha já é uma sobremesa de manga. Quando a maçã é verde, temos
cífi ca, ou então nomeia ofi ciais para domes car a horda esfaimada, pera abacate. Pois na refeição em apreço eram mesmo morangos
hercúlea tarefa nada fácil de cumprir. Outra alterna va consiste em dos verdadeiros, o que gerou o gáudio a bordo.
fazer servir aos cadetes uma refeição antes da recepção, o que nor- Sentados frente a frente a almoçar estavam dois cadetes, sendo
malmente não é de fácil execução, uma vez que o pessoal da taifa já que um cai na categoria daqueles que não enjoam, ou que já nha
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está bastante empenhado nos prepara vos para o evento, e a garan- domado o seu corpo para viver com ele, e o outro era daqueles que
a de sucesso desta medida é bastante reduzida, dada a ilimitada podia estar a vida toda embarcado que estaria sempre enjoado. O
capacidade de ingestão de alimentos que a “formiga branca” possui. primeiro, adivinhando o diminuto ape te do seu companheiro de
Conforme referi, uma das caracterís cas que a vida do mar apre- mesa, ofereceu-se para consumir os preciosos morangos, até por-
senta é a capacidade para reduzir ou eliminar o ape te em criatu- que antecipava o seu lançamento ao mar numa interpretação de
ras que, noutras circunstâncias – por exemplo em terra – seriam canto gregoriano. A resposta do segundo não se fez esperar:
vorazes devoradores de alimentos. Isto deve-se a um fenómeno − Antes vomitá-los que dá-los!
natural que dá pelo nome de enjôo. Com efeito, é próprio dos Alguns minutos depois o desejo cumpriu-se.
humanos normais fi carem mareados quando a navegar, embora
existam diversos níveis, consoante o estado do mar e a natureza Mamede Alves
de cada um. O homem é um animal de hábitos, e o enjôo também CFR
pode adquirir esta classifi cação. É bastante frequente que com o N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfi co
avançar do tempo embarcado o enjôo diminua, ou pelo menos as
suas ví mas se habituem a lidar com ele, abandonando a postura
de mortos-vivos por uma vida mais ou menos normal. Notas
A taifa é uma classe de praças da Marinha, sendo cons tuída pelas sub-classes de
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Depois existem outros poucos que padecem duma anormalidade despenseiros, cozinheiros e padeiros. Naturalmente são o pessoal de bordo mais
fi siológica relacionada com os líquidos do ouvido interno, que têm atarefado aquando da realização de recepções.
a bênção de não enjoar, como felizmente é o meu caso. 2 O despenseiro do navio é o sargento da classe da taifa e que, entre outras atribui-
Certo dia, numa viagem de instrução, a fruta servida ao almoço ções, é o responsável pelas refeições.
30 MAIO 2020