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REVISTA DA ARMADA | 551


           Entretanto, a parƟ r de 2016, graças aos esforços mili-  Mosul após a recaptura em meados de 2017.
         tares de uma coligação bastante alargada, o autodeno-
         minado  Estado Islâmico começou a perder território,
         incluindo cidades importantes como Mosul, no Iraque,
         em meados de 2017, e Raqqa, na Síria, em outubro de
         2017. Os esforços denodados dessa coligação interna-
         cional levaram à recaptura, em dezembro de 2017, de
         todo o território do Iraque que estava na sua posse.
         Na Síria, devido à enorme instabilidade decorrente da
         guerra civil, a recuperação foi mais demorada, mas, em
         março de 2019, todo o território sob controlo do Daesh
         foi recapturado.


         3ª FASE: DAESH 2.0
           A parƟ r de março de 2019, entra-se numa nova fase
         do Daesh, em que o califado passa a ser virtual, com
         a internet a ser usada de forma bastante habilidosa para recrutar   medidas que poderão contribuir para as tentaƟ vas de controlar o
         combatentes estrangeiros, espalhar infl uência e doutrinar lobos   terrorismo e de miƟ gar as suas consequências – tendo por certo que
         solitários. Persiste, também, a rede de grupos militantes afi liados ou   é extraordinariamente diİ cil erradicar esta ameaça.
         proxies, que mantém o alcance global do autodenominado Estado   Assim, será importante que os países mais desenvolvidos aju-
         Islâmico. Neste quadro, impõe-se uma referência ao ramo do Daesh   dem a fortalecer as insƟ tuições dos países mais desfavorecidos, de
         em Moçambique, muito aƟ vo nos úlƟ mos tempos. EfeƟ vamente,   onde provêm muitos dos elementos que engrossam as fi leiras do
         desde outubro de  2017 que a província de Cabo Delgado, no norte   terrorismo islâmico. Isso terá que passar por reforçar uma presença
         de Moçambique, é aterrorizada pelo grupo Ansar al-Sunna. Entre-  construƟ va, (re)estabelecer parcerias e fortalecer a governança e as
         tanto, criou-se na República DemocráƟ ca do Congo a  Província   insƟ tuições. Tal deverá incluir melhoria dos serviços administraƟ vos,
         da África Central do Estado Islâmico e, em maio de 2019, o grupo   reformas no setor da jusƟ ça e do apoio social, bem como treino e
         moçambicano juntou-se-lhe, passando a consƟ tuir o Batalhão de   capacitação das forças armadas, das polícias e dos serviços de infor-
         Moçambique da Província da África Central. Como tem sido divul-  mações. Isto enquadra-se nas teorias do norte-americano Thomas
         gado pela comunicação social, o grupo tem provocado uma instabili-  BarneƩ  sobre o  Pentagon’s New Map, que divide o mundo em
         dade forơ ssima em Cabo Delgado, contando já mais de 700 mortos,   duas partes: o “funcƟ oning core”, que se pode traduzir pelo “núcleo
         incluindo trabalhadores estrangeiros das explorações de gás existen-  empreendedor”, e o “non-integraƟ ng gap”, que pode traduzir-se
         tes na província.                                    por “espaço da exclusão”. Neste enquadramento, BarneƩ  advoga
           Voltando ao grupo principal, em 27 de outubro, al-Baghdadi, o   que os países do “núcleo empreendedor” devem ajudar a fortalecer
         líder carismáƟ co, suicida-se, após ser encurralado numa operação   as insƟ tuições dos países do “espaço da exclusão”, estabelecendo
         conduzida pelas forças especiais norte-americanas. Quatro dias   parcerias e assumindo uma presença construƟ va. Ou seja, o “núcleo
         depois, em 31 de outubro, al-Qurashi é designado como novo líder.   empreendedor” deve exportar governabilidade, organização e segu-
         Na fase atual, a aƟ vidade do Daesh pode dividir-se em três gran-  rança para o “espaço da exclusão”, para que não seja este a exportar
         des vetores: conƟ nuação de ações subversivas no Iraque e na Síria;   o seu sofrimento e as suas misérias para o “núcleo empreendedor”,
         manutenção da rede global de províncias do Daesh; e aliciamento   sob a forma de terrorismo, de migrantes irregulares e de outras per-
         de lobos solitários espalhados por todo o mundo, disponíveis para   turbações da ordem internacional. Isto é bem mais fácil de escrever
         abraçar o culto do califado e extravasar a sua revolta contra os países   do que de fazer, mas essa será a melhor forma de trazer esses países
         onde se encontram, com os quais não se idenƟ fi cam.  para níveis de desenvolvimento que difi cultem o recrutamento de
           Apesar da recuperação do território controlado no Iraque e na   elementos dominados por senƟ mentos de desespero e orfandade.
         Síria ter consƟ tuído um rude golpe para o Daesh, estes grupos têm   No entanto, como o apelo do radicalismo também se tem feito
         uma enorme capacidade de regeneração, tal como aconteceu após   senƟ r (e muito!) junto de jovens ocidentais, será também necessá-
         a morte de al-Zarqawi em 2006, em que a organização se reergueu   rio que o Ocidente reforce as suas políƟ cas de integração social, de
         sob a liderança de al-Baghdadi. Até porque o Daesh é, essencial-  educação, de promoção do emprego e de erradicação da pobreza,
         mente, uma ideologia e é muito mais diİ cil combater uma ideolo-  em parƟ cular junto das comunidades imigrantes, marginalizadas ou
         gia do que um terrorista. Além disso, a libertação, no fi nal de 2019,   automarginalizadas, para garanƟ r que os valores integradores da
         dos jihadistas que estavam em campos de detenção geridos pelos   cidadania democráƟ ca são transmiƟ dos a todos os cidadãos, evi-
         curdos, após a ofensiva turca no Nordeste da Síria, e, sobretudo, a   tando que alguns deles se sintam desenraizados e cedam ao “canto
         desordem políƟ ca e social que sobrevirá em muitos estados frágeis   da sereia” de narraƟ vas revanchistas ligadas ao radicalismo.
         na sequência da pandemia do COVID-19 poderão contribuir para   Outro aspeto que não deve ser negligenciado, consiste na neces-
         a recomposição da organização, da mesma maneira que o caos no   sidade imperaƟ va de travar de vez os canais de fi nanciamento do
         Iraque, em 2003, e na Síria, em 2011, favoreceram muito o seu cres-  autodenominado Estado Islâmico.
         cimento.                                              Finalmente e porque esta é uma verdadeira guerra de ideias, afi gu-
                                                              ra-se importante promover líderes islâmicos moderados que reƟ rem
         CONTRIBUTOS PARA UMA ESTRATÉGIA                      espaço ao radicalismo, como, de alguma forma, foi feito durante a
         ABRANGENTE                                           guerra fria, em que o ocidente apoiou dissidentes comunistas como
                                                              Aleksandr Solzhenitsyn, Andrei Sakharov ou Vaclav Havel.
           Neste quadro e com a perfeita noção da extrema complexidade
         dos fenómenos por detrás dos métodos terroristas, não gostaria                            Sardinha Monteiro
         deixar de referir, de forma completamente despretensiosa, algumas                                  CMG


                                                                                                    MAIO 2020  5
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