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REVISTA DA ARMADA | 555













              AS EMBARCAÇÕES                             Os pescadores da Praia de Mira, em Fevereiro de 2012, no Museu de Marinha, junto à popa
                                                         do úlƟ mo Barco do Mar grande – “Santo António” da Torreira.
               A “Arte” da Beira Litoral, nos areais de Espinho à
              Vieira – com os seus caracterísƟ cos e fascinantes “Bar-
              cos do Mar” (assim chamados a norte do Mondego),
              ou “Barcos da Arte” (a sul desse rio), em forma de
              “meia-lua” – irradiou no passado para sul, chegando
              a estabelecer núcleos em areais semelhantes na Costa
              de Caparica e Santo André. Não é verdadeiramente
              uma rede de arrasto, no senƟ do moderno da pala-
              vra (e, por isso, muito pouco destruƟ va em termos
              ambientais). Trata-se de redes envolventes-arrastan-
              tes (só à superİ cie…) consƟ tuídas por saco, mangas,
              e cabos, que operam no mar, sem portos (!), em lito-
              rais portugueses arenosos e baixos (nas costas, parƟ -
              cularmente desabrigadas, do Ocidente Peninsular), e
              são lançadas aí por embarcações afi ladas, da família
              das Bateiras (!), de fundo plano (!), sem quilha (!), e
              sem leme (!), “que erguem até ao céu as proas e as
              popas desmedidas” (como escreveu Raul Brandão).
              Uma estranha embarcação, única no mundo, de uma
              beleza quase irreal, que mais parece ser feita para ser
              vista do que usada (mais uma escultura do que uma embarcação),   um louvor à Marinha Portuguesa, que salvou o úlƟ mo grande
              mas que, na verdade, foi mesmo criada pelo próprio uso (a sua fun-  “Barco do Mar”.
              ção originou a sua estrutura): cujo desenvolvimento, local, julgamos   Quanto à possível origem desta invulgar embarcação portuguesa
              derivado de uma selecção natural que se poderia dizer darwiniana…   e europeia, os autores dividem-se. O Arq. Octávio Lixa Filgueiras
              “Novos problemas originam novas soluções”: uma embarcação   considerou-a descendente de canoas de tábuas de origem meso-
              capaz de varar a rebentação (“surf”) para entrar no mar, e deslizar   potâmica (aparentada com um barco de Ur); já Fernando Alonso
              nessa mesma rebentação para regressar (e, por fi m, capaz de varar   Romero considera-a um misto de caracterísƟ cas atlânƟ cas e medi-
              em terra, na areia da praia). A embarcação dos “Vareiros”…! Surfi s-  terrânicas, célƟ co-romana. Carlos Carvalho, Fernando Simões Dias,
              tas… Mas que teve de crescer (enorme, e forte…), para fazer frente a   Senos da Fonseca e o signatário consideram-na uma criação local,
              tanto mar como o da Costa Ocidental, face a face com a rebentação   nascida na Ria de Aveiro e de lá saída para enfrentar a difi culdade
              assassina – na “pancada do mar”, no “lago do mar” (ou no “mar das   do mar; daí a referência acima a Charles Darwin.
              viúvas”), e, pior ainda, no “mar da cabeça”…! Nos litorais da Ria de
              Ovar e de Aveiro-Ílhavo, os Vareiros em geral e os Varinos em parƟ -  ORIGENS
              cular criaram a sua embarcação “sozinhos com Deus e o Mar”. Uma
              gente formidável, com a sua fabulosa embarcação (a que chamei “os   A “Arte” real, ou “Arte” grande (à maneira catalã), subsƟ tuiu
              mais pobres dos pobres, com o mais belo barco do mundo”…).  as redes locais portuguesas mais pequenas, chamadas de “chin-
               O Museu de Marinha, em Lisboa, conservou e ainda hoje expõe,   chorros” (e nunca “xávegas) nos litorais da Ria de Aveiro e da Beira
              lado a lado, o “Santo António”, um “Barco do Mar”, da “Arte” da   Litoral, do Furadouro a Buarcos na segunda metade do séc. XVIII.
              Beira Litoral, e o “São João BapƟ sta”, um “Barco da Xávega”, do   Há nela uma níƟ da infl uência galega (e oriunda da própria infl uên-
              Algarve (plano, e mais pequeno, igual aos da “Jábega” de Málaga   cia, então, da Catalunha na Galiza). A parƟ r de 1776 veio a ter no
              e da Andaluzia). Percebe-se imediatamente a diferença; se alguma   Furadouro o seu principal centro, com dezenas de companhas em
              vez um “Barco da Xávega”, do Algarve, Ɵ vesse sido posto nos lito-  acƟ vidade. Depois estendeu-se primeiro até à Vieira, depois até
              rais ocidentais desabrigados, como o de Palheiros de Mira, prova-  aos areais da Costa de Caparica, com pescadores do Norte, idos
              velmente parƟ a-se no primeiro dia.                 dos litorais da Ria de Aveiro, abastecendo Lisboa de sardinha.
               O “Santo António” era da Torreira; grande, de quatro remos e 42   No séc. XIX, já no tempo do Liberalismo, de Espinho à Vieira esta
              homens, era irmão gémeo do “São Paio”, também da Torreira, que   aƟ vidade pesqueira prosperou e cresceu, levando ao aumento do
              foi para Inglaterra, para o Exeter MariƟ me Museum (que Ɵ nha a   tamanho das embarcações, das redes, e à introdução da tracção
              maior e melhor colecção de embarcações de pesca portuguesas, e   animal (com os bois dos lavradores do interior), para alar as enor-
              que até usava a silhueta deste barco como seu logoƟ po, mas que   mes redes. E por isso o lusitanista francês Ferdinand Denis excla-
              fechou portas em 1997). Daí poderá ter ido para a Escócia, para o   mou “Estranho país, onde os bois lavram o mar!”…
              Eyemouth MariƟ me Museum, que fechou portas em 2017; desco-  No séc. XX conƟ nuou a crescer, embora, na sua segunda metade,
              nhece-se, por isso, o seu paradeiro actual.         cada vez mais “crismada” com terminologia errada. Foi com a sua
               Já não existe nenhuma outra grande embarcação semelhante   terminologia verdadeira que foi descrita por Raul Brandão em
              em operação na costa portuguesa. Se o “São Paio” foi destruído,   1922-1923 em Palheiros de Mira, e fi lmada por Paulo Rocha em


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