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REVISTA DA ARMADA | 564
Por outro lado, decorrem, também indirectamente, do fim da
Guerra Fria os percalços relacionados com o terrorismo interna-
cional, de inspiração islâmica. É verdade que, em particular por
parte dos Estados Unidos, talvez tenha havido um excesso de zelo
em armar, municiar e respaldar, ou, pelo menos, fazer vista gros-
sa ao crescendo de radicalização islâmica, pois tais movimentos
jamais ocultaram até mais não poder a sua agenda própria, que
se não resumia de todo ao combate contra o invasor soviético no
Afeganistão. Todavia, não é menos verdade que uma coisa é a
ideia posterior de guerra contra o terrorismo, a segunda invasão
do Iraque, a exportação do poderio da super-potência restante,
outra, substancialmente diferente, é a previsão de que o mun-
do correria de forma necessária pelas baias pelas quais veio a
correr, havendo, portanto, obrigação em prever que o cenário só
poderia vir a ser aquele onde pontuou o islamismo radical. É a tal
imprevisibilidade da história, das coisas humanas em geral, com
as quais os cenaristas não atinam de todo. De qualquer forma,
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para os Estados Unidos uma resposta ao desafio da dita potência o protagonismo desse radicalismo islâmico também sempre foi
continental nos shatter belts e de modo algum sinalizava qual- muito relativo, acaso perscrutemos as grandes linhas de continui-
quer tentativa de inversão de prioridade oceânica. dade ou de fractura geopolítica e geoestratégica, não só porque
Na verdade, a grande alteração, senão mutação, destes últi- os seus recursos eram e são limitados, mas sobretudo porque o
mos 50 anos veio quase duas décadas depois, com a implosão principal agente político de ampliação da ameaça, tirante o medo
da União Soviética, indirectamente derrotada no confronto da difuso, de uma sociedade obcecada pela segurança e a imunida-
Guerra Fria. De forma inesperada, nomeadamente para os so- de, foi a principal potência mundial, de acordo com os seus ava-
vietólogos, a queda da União Soviética, fruto da derrisão inter- tares próprios de projecção de poder.
na e não da incapacidade estratégica, ou da deficiência militar Certo é que a Guerra Fria não explica tudo, e outras constân-
(lembremo-nos que a designada revolução dos assuntos militares cias há para explicar a realidade internacional. À excepção de um
estava a dar os primeiros passos no Ocidente e que a mesma, na curto período em que a Rússia, amputada do amparo da União
sua concepção, era de origem soviética), veio modificar todos os Soviética, se encontrava em crise de liderança económica e exis-
racionais geoestratégicos. tencial, razão pela qual os Estados Unidos procuraram seduzi-la,
chegando mesmo a pensar fazer dela um parceiro privilegiado
PÓS GUERRA FRIA da NATO, uma vez que já não traduziria um perigo de maior, na
verdade, a rivalidade de poder entre os Estados Unidos e a Rússia
50 ANOS DE HISTÓRIA: ção interna, obedecendo a lógicas próprias, é certo, do ónus de mantém-se. Revelando racionais geopolíticos e geoestratégicos
O fim da Guerra Fria liberta desde logo a China, em transforma-
discrepantes de longa duração acerca da projecção de poder na
ser uma potência comunista em ascensão. Como o foco, o eixo Europa e na Ásia. Quer dizer que a Guerra Fria não se limitava à
ideologia e o seu rasto perpassa ainda hoje, independentemen-
ALTERAÇÕES GEOPOLÍTICAS E GEOESTRATÉGICAS orientador da confrontação (a URSS) tinha sido vencido, a as- te dos regimes e das práticas internacionais, pelo ominoso acu-
censão chinesa não fazia perigar, na aparência, um bem maior, a
capacidade de os Estados Unidos se imporem como principal ba- amento da Rússia; racional verdadeiramente despropositado se
luarte de uma nova era. Chegou a falar-se de unipolaridade e de observado a partir da projecção de Mercator e não da de Miller,
e muito mais atoleimado ainda, no caso da Europa, visto ser a
uma nova ordem mundial, e de exportar, se não a filosofia políti- Rússia uma potência do concerto europeu há muito. 2
co-constitucional ocidental, a sua concepção político-económica Por outro lado, embora o fim da Guerra Fria explique parte da
para a China, a qual parecia ser um excelente receptor, tal como libertação da China, ou da pressão sobre a China, transformada
as economias da bacia do Pacífico, agora com grande dinamismo, em potencial mercado manufactureiro aos olhos da economia
e sem o peso industrial obsoleto, a remodelar, que fixava as eco- ocidental do imediato pós-guerra fria, a sua ascensão remete
nomias da Europa Oriental, saídas da chamada Cortina de Ferro. para uma complexa história interna, para o retomar do pungen-
Além do mais, ao aquecimento geoeconómico do Pacífico come- te mercado ribeirinho Indo-Pacífico, que apenas (e em parte) a
çava a não corresponder uma incontestável primazia geoestra- época das canhoneiras pôde drenar para Ocidente, quando tinha
tégica do Atlântico, porque a força geoeconómica transatlântica, sido sempre um mundo geoeconómico altamente estruturado
essa já estava consolidada, não havendo razões para continuar a em termos funcionais, voltando de novo a sê-lo.
colocar todos os ovos no mesmo cesto, como sói dizer-se.
Do fim da Guerra Fria decorrem outros acontecimentos subse-
quentes, tais como o reforçar da coesão europeia em torno da
(hoje) União Europeia, cada vez mais politicamente autónoma
em relação aos Estados Unidos, tanto por força da desnecessida-
de da garantia face ao colosso soviético que, durante mais de uma
década, se esbarrondou vertiginosamente, como por intermédio
de uma viragem centrípeta, movida em torno da Alemanha e do
centro da Europa, escapando um pouco a uma dinâmica mais
atlantista – resta saber até que ponto a saída do Reino Unido da
União Europeia, à parte a conjugação de interesses momentâne-
os, não está relacionada com a viragem continental, escassamen-
te remuneradora para os objectivos geoestratégicos britânicos.
JULHO 2021 5