Page 5 - Revista da Armada
P. 5

REVISTA DA ARMADA | 564

                                                                Por outro lado, decorrem, também indirectamente, do fim da
                                                              Guerra Fria os percalços relacionados com o terrorismo interna-
                                                              cional, de inspiração islâmica. É verdade que, em particular por
                                                              parte dos Estados Unidos, talvez tenha havido um excesso de zelo
                                                              em armar, municiar e respaldar, ou, pelo menos, fazer vista gros-
                                                              sa ao crescendo de radicalização islâmica, pois tais movimentos
                                                              jamais ocultaram até mais não poder a sua agenda própria, que
                                                              se não resumia de todo ao combate contra o invasor soviético no
                                                              Afeganistão. Todavia, não é menos verdade que uma coisa é a
                                                              ideia posterior de guerra contra o terrorismo, a segunda invasão
                                                              do Iraque, a exportação do poderio da super-potência restante,
                                                              outra, substancialmente diferente, é a previsão de que o mun-
                                                              do correria de forma necessária pelas baias pelas quais veio a
                                                              correr, havendo, portanto, obrigação em prever que o cenário só
                                                              poderia vir a ser aquele onde pontuou o islamismo radical. É a tal
                                                              imprevisibilidade da história, das coisas humanas em geral, com
                                                              as quais os cenaristas não atinam de todo.  De qualquer forma,
                                                                                               1
          para os Estados Unidos uma resposta ao desafio da dita potência   o protagonismo desse radicalismo islâmico também sempre foi
          continental nos shatter belts e de modo algum sinalizava qual-  muito relativo, acaso perscrutemos as grandes linhas de continui-
          quer tentativa de inversão de prioridade oceânica.   dade ou de fractura geopolítica e geoestratégica, não só porque
           Na  verdade,  a  grande  alteração,  senão  mutação,  destes  últi-  os seus recursos eram e são limitados, mas sobretudo porque o
          mos 50 anos veio quase duas décadas depois, com a implosão   principal agente político de ampliação da ameaça, tirante o medo
          da  União  Soviética,  indirectamente  derrotada  no  confronto  da   difuso, de uma sociedade obcecada pela segurança e a imunida-
          Guerra Fria. De forma inesperada, nomeadamente para os so-  de, foi a principal potência mundial, de acordo com os seus ava-
          vietólogos, a queda da União Soviética, fruto da derrisão inter-  tares próprios de projecção de poder.
          na e não da incapacidade estratégica, ou da deficiência militar   Certo é que a Guerra Fria não explica tudo, e outras constân-
          (lembremo-nos que a designada revolução dos assuntos militares   cias há para explicar a realidade internacional. À excepção de um
          estava a dar os primeiros passos no Ocidente e que a mesma, na   curto período em que a Rússia, amputada do amparo da União
          sua concepção, era de origem soviética), veio modificar todos os   Soviética, se encontrava em crise de liderança económica e exis-
          racionais geoestratégicos.                          tencial, razão pela qual os Estados Unidos procuraram seduzi-la,
                                                              chegando mesmo a pensar fazer dela um parceiro privilegiado
          PÓS GUERRA FRIA                                     da NATO, uma vez que já não traduziria um perigo de maior, na
                                                              verdade, a rivalidade de poder entre os Estados Unidos e a Rússia
 50 ANOS DE HISTÓRIA:  ção interna, obedecendo a lógicas próprias, é certo, do ónus de   mantém-se. Revelando racionais geopolíticos e geoestratégicos
           O fim da Guerra Fria liberta desde logo a China, em transforma-
                                                              discrepantes de longa duração acerca da projecção de poder na
          ser uma potência comunista em ascensão. Como o foco, o eixo   Europa e na Ásia. Quer dizer que a Guerra Fria não se limitava à
                                                              ideologia e o seu rasto perpassa ainda hoje, independentemen-
 ALTERAÇÕES GEOPOLÍTICAS E GEOESTRATÉGICAS  orientador  da  confrontação  (a  URSS)  tinha  sido  vencido,  a  as-  te dos regimes e das práticas internacionais, pelo ominoso acu-
          censão chinesa não fazia perigar, na aparência, um bem maior, a
          capacidade de os Estados Unidos se imporem como principal ba-  amento da Rússia; racional verdadeiramente despropositado se
          luarte de uma nova era. Chegou a falar-se de unipolaridade e de   observado a partir da projecção de Mercator e não da de Miller,
                                                              e muito mais atoleimado ainda, no caso da Europa, visto ser a
          uma nova ordem mundial, e de exportar, se não a filosofia políti-  Rússia uma potência do concerto europeu há muito. 2
          co-constitucional ocidental, a sua concepção político-económica   Por outro lado, embora o fim da Guerra Fria explique parte da
          para a China, a qual parecia ser um excelente receptor, tal como   libertação da China, ou da pressão sobre a China, transformada
          as economias da bacia do Pacífico, agora com grande dinamismo,   em  potencial  mercado  manufactureiro aos olhos  da economia
          e sem o peso industrial obsoleto, a remodelar, que fixava as eco-  ocidental do  imediato pós-guerra fria, a sua  ascensão remete
          nomias da Europa Oriental, saídas da chamada Cortina de Ferro.   para uma complexa história interna, para o retomar do pungen-
          Além do mais, ao aquecimento geoeconómico do Pacífico come-  te mercado ribeirinho Indo-Pacífico, que apenas (e em parte) a
          çava a não corresponder uma incontestável primazia geoestra-  época das canhoneiras pôde drenar para Ocidente, quando tinha
          tégica do Atlântico, porque a força geoeconómica transatlântica,   sido  sempre um mundo  geoeconómico altamente estruturado
          essa já estava consolidada, não havendo razões para continuar a   em termos funcionais, voltando de novo a sê-lo.
          colocar todos os ovos no mesmo cesto, como sói dizer-se.
           Do fim da Guerra Fria decorrem outros acontecimentos subse-
          quentes, tais como o reforçar da coesão europeia em torno da
          (hoje)  União  Europeia,  cada  vez  mais  politicamente  autónoma
          em relação aos Estados Unidos, tanto por força da desnecessida-
          de da garantia face ao colosso soviético que, durante mais de uma
          década, se esbarrondou vertiginosamente, como por intermédio
          de uma viragem centrípeta, movida em torno da Alemanha e do
          centro  da  Europa,  escapando  um  pouco  a  uma  dinâmica  mais
          atlantista – resta saber até que ponto a saída do Reino Unido da
          União Europeia, à parte a conjugação de interesses momentâne-
          os, não está relacionada com a viragem continental, escassamen-
          te remuneradora para os objectivos geoestratégicos britânicos.


                                                                                                    JULHO 2021  5
   1   2   3   4   5   6   7   8   9   10