Page 6 - Revista da Armada
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POLIARQUIA EMERGENTE

           No fundo, a cena internacional, tanto no imediato pós-Guerra
          Fria, como agora, revela uma poliarquia, em que a preponderân-
          cia dos  Estados  Unidos  é cada vez mais contestada, enquanto
          única super-potência restante. Nunca tendo configurado, muito
          menos hoje, uma situação de unipolaridade.
           Preferimos falar em poliarquia, no sentido etimológico do ter-
          mo, porque nenhuma das grandes potências internacionais faz
          parte de uma ordem ou de um concerto bem articulado, com
          as suas isometrias e isomorfias, se é que algumas vez o fez, se
          exceptuarmos aparentemente o período da Guerra Fria. Os dife-
          rentes pólos de poder parecem actuar de forma avulsa, porque
          soltos dessa ordenação, podendo por vezes fazer ressaltar a ideia
          de um poder ostensivo único. Uma percepção aparente que não
          corresponde  à  realidade,  derivando  antes  da  ilusão  provocada
          pela invertebração de base. Na realidade, a poliarquia diz apenas  E PORTUGAL…
          da existência de diversos pólos de poder, não necessariamente
          simétricos, mas também não necessariamente assimétricos, e é   Por fim, umas quantas linhas sobre Portugal. Porque no caso
          tudo; não define, por força de uma tal invertebração, nenhuma   português, a não ser indirectamente, por via do reforço centrípe-
          modalidade  de  articulação  de  poder  privilegiada,  mesmo  que   to da União Europeia, a que Portugal aderiu em 1986, enquanto
          esta se possa momentaneamente verificar.            CEE, e da desvalorização relativa mas paulatina do eixo transa-
           Bem vistas as coisas, não se trata de nada particularmente es-  tlântico, compreensível, atendendo à projecção de Miller, logo
          pantoso, antes é uma consequência prática do poder ser um feixe   que o prato da balança do Pacífico se equilibrasse para os Estados
          de relações relativamente flutuante e cada vez mais ramificado.   Unidos, caso a Guerra Fria diminuísse de intensidade ou até aca-
          Num  mundo  globalizado,  esta  configuração  desconfiguralizada   basse, o que veio a ocorrer; pois bem, dizíamos, fora isso, para
          e desconfiguralizante do poder, por assim dizer, que é a poliar-  Portugal, a paradoxal grande alteração não  decorre da Guerra
          quia, tende a agudizar-se e deparamo-nos com distintas esferas   Fria mas da concomitância, nos temos da conjuntura longa (me-
          do poder que ora se sobrepõem ora se afastam, mas não coinci-  diada apenas de uma dúzia de anos de distância), entre o fim do
          dem ordenadamente num todo tendencialmente isomórfico, seja   império ultramarino e da entrada na então Comunidade Econó-
          ele multipolar, bipolar ou unipolar. A flutuação e deslizamento   mica Europeia. Afinal, aquilo que se revelou paradoxal foi a perda
          do próprio poder faz com que se torne praticamente impossível   do protagonismo geopolítico e geoeconómico atlântico em detri-
          falar num pólo monopolizador das diferentes esferas de poder e   mento da relação intra-europeia. Não sucedeu verdadeiramente
          mesmo dentro de cada uma delas é igualmente manifesta essa   assim em termos geoestratégicos, daí relevando uma certa ten-
          flutuação. Dramatizando com alguma liberdade o jargão, poder-  são entre a política e a estratégia, por resolver, aumentada pelo
          -se-ia dizer que o recorte internacional do poder está cada vez   incremento putativo da zona económica exclusiva portuguesa e
          mais fractalizado. Podemos facilmente avaliar de um tal estado   pelo necessário crescimento (por efectivar) e operacionalização
          de coisas, olhando para os Estados Unidos, potência sem rival   de meios navais correspondentes.
          em determinadas esferas e face a outros pólos. Pois bem, mes-
          mo na esfera em que a superioridade norte-americana é maior,
          a militar, os Estados Unidos ficaram recentemente atolados em                        António Horta Fernandes
          duas guerras com características subversivas, quer do ponto de   Docente do Departamento de Estudos Políticos da FCSH-UNL,
          vista do exercício remunerador do aparelho militar nesse tipo de                         Investigador do IPRI
          guerras, quer da óptica das repercussões estratégicas, assinalá-
          veis a todos os níveis, ao esticar o dispositivo quase até à sua   N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico.
          extensão máxima, algo nunca ocorrido no Vietname, apesar do
          empenhamento quantitativo e qualitativo da força ter sido muito
          maior. Neste contexto, a única coisa a concluir é que as diferen-  Notas
          tes esferas de poder interagem e fazem-no de forma complexa   1  Sobre as fontes da indeterminação,  MacIntyre já lhes respondeu de forma cabal e
          e não-harmónica. Fazendo bruxulear uma vez mais o indómito   de uma vez por todas. Veja-se Alsdair MacIntyre, After Virtue: a study in moral theory,
                                                                third edition, Notre Dame, Ind., University of Notre Dame Press, pp. 88 e ss, 2007.
          conceito de poliarquia. De resto, em perfeita consonância com   2   Mostrando, por conseguinte, que, no caso norte-americano, a oposição à Rússia é
          o carácter assistémico das relações internacionais de facto, quer   mais funda do que uma oposição ideológica e geopolítica, sendo mesmo antropo-
                                                                lógica. Veja-se David Foglesong, The Americam Mission and the “Evil Empire”. The
          por via da ideia e prática da soberania (e talvez do carácter cada   crusade for a “free Russia” since 1881, New York, Cambridge University Press, 2007.
          vez mais dúctil do poder em si), quer por força da guerra, ambos   3   Tudo isto sem contar com a não necessária congruência entre o poder como
          elementos estruturantes da cena internacional e ambos ontológi-  imposição, leve ou pesada, e o poder como determinação de modos de vidas.
                                                                Para além da décalage na efectivação e no resultado, imprevisível à partida, entre
          ca e fenomenologicamente assistémicos; para nada dizer do pró-  potência e poder como aplicação adaptada (e forçosamente alterada) da potência
                                                                no ponto.
          prio sentido constitutivo da acção humana, valha o pleonasmo. 3

          6   JULHO 2021
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