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REVISTA DA ARMADA | 572
Luneta do Hemiciclo, com pintura a óleo sobre tela representando as Cortes Constituintes de 1821, concebida por José Maria Veloso Salgado entre 1820 e 1823,
Foto de Tiago Fernandez e Sandra Ribeiro, 2021
© Arquivo Fotográfico da Assembleia da República, PT-AHF/AF/R1747/i28
A CONSTITUIÇÃO DE 1822
200 ANOS DE CONSTITUCIONALISMO
EM PORTUGAL
PARTE I
“A Constituição política da Nação Portuguesa tem por objecto de um quadro constitucional, na Constituição de Cádis de 1812 .
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manter a liberdade, segurança, e propriedade de todos os Aquele momento da convocação das Cortes, e o texto
Portugueses”. Preceituava assim o artigo 1º da Constituição de constitucional de 1822, de conteúdo acentuadamente
1822. Completam-se, este ano, exatamente dois séculos de história parlamentarista como adiante veremos, representou, afinal, o
constitucional em Portugal, sendo que o percurso nacional das terminar de um longo tempo histórico com praticamente 700 anos ,
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instituições parlamentares não se iniciou apenas em 1910, como, embora Portugal não tivesse, claramente – a não ser em períodos
por vezes, poderá existir a ideia até devido ao marcante período muito circunstanciados, em especial com a época pombalina –
institucional de regime que existiu desde essa data. Importa, assim, uma tradição de absolutismo puro na abordagem política que o
pela relevância fulcral que o texto constitucional de 1822 teve num regime conheceu, de forma acentuada, noutros Estados europeus.
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determinado contexto geopolítico e social, atentar nas formulações Do seu articulado, resulta claro que a soberania passaria a residir
que o seu articulado estabeleceu, bem como nos pressupostos que no Congresso , e não no Rei, facto que viria a suscitar fortíssimas
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conheceu no âmbito da designada revolução liberal. reações devido às limitações aos poderes Reais e do próprio poder
executivo face à claríssima ascensão do poder parlamentar.
ENQUADRAMENTO Aliás, o predomínio de deputados ditos mais radicais nas Cortes
Extraordinárias Constituintes induziu a que o articulado da
O caminho europeu do liberalismo e as vontades crescentes Constituição revelasse uma ostensiva visão de um parlamentarismo
de vários setores da sociedade nacional em que existisse um exacerbado, e um acentuado republicanismo, o que, na altura,
parlamento com representantes do povo fizeram emergir, provocaria uma acutilante reatividade e revolta não apenas das
inicialmente, em 1820, a designada revolução do Porto, da qual forças mais conservadoras, mas igualmente das liberais mais
nasceu todo o contexto para a convocação das primeiras Cortes moderadas, que eram, notoriamente, a maioria da arquitectura
Constituintes, encarregues, precisamente, de elaborar um texto social de então.
constitucional. Toda a ideologia liberal assentava na ideia de que A revolução de 1820 seguiu, na sua lógica indutora, um
a soberania deveria transitar do Rei para o povo , que a exerceria movimento europeu, tendo ocorrido revoltas liberais,
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através de representantes eleitos que, em âmbito parlamentar, precisamente, nesse ano, em Nápoles, Turim e Madrid, numa
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representariam a Nação, falariam em nome dos representados acção condenada pelos Estados (unidos na Santa Aliança) que
e definiriam as grandes linhas da política e do ordenamento decidiram intervenções militares nos países onde tais revoltas
legislativo nacional. mais radicais ocorriam.
Perante um país totalmente descrente, dependente, rural, A Vilafrancada, em Maio do ano seguinte, marcaria um novo
fortemente empobrecido e sujeito às suseranias próprias de tempo, e ditaria o fim da Constituição de 1822. O fulgor inicial das
um contexto político feudalizado, acrescido do facto do poder invocações liberais mais radicais foi conhecendo o desgaste pró-
Real estar, há quase década e meia , estruturado no Brasil , as prio das desmotivações, tendo-se verificado, também, o progres-
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burguesias mercantis impulsionavam movimentos de raiz liberal sivo abandono de ideários e das lutas políticas por parte de al-
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fortemente ideológica, motivando massas populares nas ruas, gumas das elites liberais mais conservadoras, e tradicionalistas ,
e as elites nos gabinetes, agregando coesões com peso sócio- muito devido ao facto do chamado verbalismo ideológico não ter
político para induzir mudanças estruturais no regime. efectivas repercussões em reformas concretas . Os contra-re-
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Os alvores dos ideais de inspiração liberal e de criação de volucionários impuseram, em 1823 , a ideia de que o sistema
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uma organização política assente em novos pressupostos de liberal se caracterizava por meras lutas teóricas estéreis de âm-
organização sócio-política foram, de facto, fortemente inspirados bito parlamentar e por amplos e intensos debates que dividiam
nas revoluções francesa e americana e, em termos de formação e sectorizavam gravemente o País . Na Vilafrancada, e noutros
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10 ABRIL 2022