Page 374 - Revista da Armada
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sentiam,  no maJor silêncio,  a  ago-  serva dor, que nem as exigências da   recebia o náuÚ'8go já extenuado de
           nia da pobre vitima e lamentavam   arte, nem a linguagem pitoresca do   forças; e em seguida, aproado à cor-
            do fundo da alma o castigo arbitrá-  génio mais realista, o poderiam re-  veta,  os seus tripulantes remando
           rio  e  injusto  que estava  sofrendo   produzir na tela ou no escrito, com   à  voga arrancada, com a consciên-
            um bom marinheiro, por ter dito a   a precisão do seu desenho, e o co-  cia de uma boa acção, atracaram a
            verdade contra um superior que o   lorido do seu sentimentol        bordo, subindo o  marinheiro para
            expoliava dos seus haveres, e assis-  Entretanto, a bordo da corveta   dentro da corveta, com a convicção
            tia ao seu martfrio com o desdém   em que a cena se representava en-  intima de que,  se não tinha prati-
            e o cinismo de um malvado, de um   tão,  as mSiquinas e os actores fun-  cado um acto de merecimento, ha-
            hipócrita, sem o mais pequeno si-  cionavam sob uma forma passiva.   via,  pelo  menos,  mostrado  uma
            nal,  nem  de sentimento,  nem  de   Parecia uma natureza morta, mani-  verdadeira coragem.
            emoção!                           festando apenas o pensamento pin-  Efectivamente, por muito bem que
               No entanto, as pancadas de chi-  tado  na  expressão  lamentosa  de   ele soubesse nadar, peJa maior con-
            bata  ressoavam  aos  ouvidos  da   toda a equipagem. Os marinheiros   fiança  que  tivesse no seu  Animo,
            equipagem no tom seco e vibrante   fonnados na tolda ai se conserva·   nas suas forças  e  na humanidade
            do açoute empregado na correcção   vam quedas por efeito da discipli-  do seu comandante, podia ter tido
            de um escravo, no supliCiO de um   na; mas todas as vistas se dirigiam   um mau encontro no mar, ou o na-
            justol Era um verdadeiro quadro de   para o seu chefe, como implorando   vio, refrescando o vento, ter-se afas-
            dor  impressionando  as  imagina-  e  esperando  a  ordem  do socorro,   tado  tanto  que  não  o  pudesse
            ções dos valentes marujos, fortes e   originada num lampejo de humani-  recolherl Nestas circunstAncias,  a
            vigorosos,  mas  tristes e  fatigados   dade. O comandante, porém, como   não ser aquelas que motivaram a
            destes continuas espectáculos de   um homem de m.!Úmore, a nada se   sua acção corajosa e mesmo teme-
            ódio e sofrimento!                movia, parecendo que o choque do   rária, o valente marinheiro teria sj·
               De repente,  e enquanto o con-  tninsfuga fora para ele o de um ca-  do decerto recebido em triunfo, no
            tramestre procurava posição para   dáver, ao qual estivesse prestando   meio de uma ovação mais espontA-
            aplicar o seu décimo terceiro golpe,   as  últimas honras fúnebres!   nea do que tantos entusiasmos de
            o acusado abre rapidamente cami-                                    encomenda, que se vêm enjeitados
                                              Então os oficiais comovidos até à
            nho por entre a guarnição fonnada,                                  pela  ordem  a  que  devem  o  ser,
                                              indignação com o procedimento re-
            sobe ao portaló de sotavento e ati-                                 apresentando-se como filhos da c0-
                                              pugnante que estavam presencian-
            ra consigo ao mar, desaparecendo                                    munidade! Apesar do obstáculo a
                                              do,  e  revoltados  contra  a  sua
            como um relámpago que debca  to-                                    um  tal entusiasmo,  todos  espera-
                                              própria inércia, dirigiram-se ao co-
            dos assombradosl O comandante fi-  mandante e pediram-lhe respeito-  vam, no entanto, que o comandan-
            cou,  porém,  impassivel,  mudo,                                    telhe perdoasse, levando em conta
                                              samente  que  atravessasse  a
            indiferente como  uma  estátua  de                                  do castigo, que o réu devia receber,
                                              corveta e mandasse arriar um esca·
            mármore coroada de louros e de ro-  ler para recolher o marinheiro, que   o grande risco que correra a sua vj-
            sas! E  a  corveta  continuou  a  sua                               da,  sem  ofensa  pública  ou  par-
                                              se  via pela popa do navio, nadan-
            derrota parecendo que nada havia                                    ticular.
                                              do como  um pebce.
            sucedido de extraordinário a bordo!                                     O  escaler foi içado,  a verga da
               A  queda  do homem  ao mar é      O  comandante  cedeu  sem  a   gávEta  braceada à  bolina e a guar-
            um  dos  acontecimentos  mais  im-  mais pequena reflexão, como quem   niçAo fonnou, ficando tudo como no
            pressivos  e  sensacionais que  aci-  ftl esperava esta súplica, parecendo   começo do castigo. O comandante
            dentalmente ocorrem numa viagem   não ter sido o seu propósito outro   tinha-se conservado no degrau do
            marftima. Inesperado, súbito, e tan-  do que mostrar-se mais duro e mais   catavento, olhando com a maior in-
            tas vezez funesto,  este acidente é   cruel para dominar pelo terror. Fos-  diferença  para  as  diversas  muta-
            dos  que mais  afectam  o  coração   se,  porém,  real ou aparente o seu   çoos da cena e para o réu, a quem
            sensivel aos perigos de um elemen-  indiferentismo, a gávea foi bracea-  mandara mudar a  roupa.
            to inconstante,  volúvel e capricho-  da pelo redondo, arriou-se um esca-  Um siMncio religioso se seguiu
            so,  ora  terrivel  e  ameaçador  nas   ler e num momento, como se todos   à  última manobra, esperandO todos
            suas vagas encapeladas e devoran-  corressem a  salvar a própria vida,   que o comandante, mais condoido
            tes,  ora belo e ilusivo nos reflexos   guarneceu-se a pequena embarca-  do preso do que disposto a uma jus-
            de um céu sereno e puro. A  voz tris-  ção,  a  qual largou para recolher o   tiça vindicativa, terminasse aquela
            temente anunciadora  de «Homem    marinheiro que já mal se via a gran-  sjtuação profundamente impressi-
            ao Mar», é no meio do oceano  um   de distAncia  da  corveta.       va e  comovente. Em numerosas fi-
            presságio de desgraça, tanto mais    Toda  a  equipagem  estava  ex-  sionomias,  já  desanuaviadas pela
            fatal e  temido,  quantos mais  difi-  traordináriamente  inquieta  pelo   esperança de um perdão merecido,
            ceis são os meios de socorrê-lo nes-  desfecho  de  um  drama  mar/timo,   manifestava-se o convencimento in-
            sa  ocasião aflitiva.             que à fértil imaginação dos velhos   timo de uma exortação, ao mesmo
               O quadro em que se represen-   lobos-da-mar, nunca tinha ocorrido   tempo severa e edificante, sobre o
            ta  um homem no mar lutando pela   durante as suas longas viagens, jul-  desvario inexplicável  do culpado,
            vida é um dos mais emocionantes   gando impossivel,  até ali,  que pu-  impondo-se  voluntariamente  um
            nas  viagens marftimas.  E  as suas   desse  um  dia  representar-se  a   castigo, que lhe podia ter sido mais
            impressões dolorosas reflectem-se   bordo do seu navio, sendo eles os  sensivel do que aquele que lhe es-
            de tal modo na imaginação do ob-  espectadores! No entanto, o escaler   tava  reservado a bordo.

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