Page 96 - Revista da Armada
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e  poucos se aguentavam agarrados a  este ou àquele
            pedaço  flutuante,  dispersando-se  pelo  mar  revolto.
           Sindbad escapou encavalitado num troço de mastro,
           e  o  vento e  as vagas levaram-no, até dar à  costa em
           extensa praia. Extenuado de fadiga e  fome,  receoso
           de se ver só, descansou primeiro do esforço dispen-
           dido, deixou passar a  noite, e  só no dia seguinte se
           encorajou a  explorar a  terra que Alá  lhe destinara.
           Andou, colheu alguns frutos comestíveis, embrenhou-
           -se  no  mato,  e  foi  ter a  lugar  muito  belo onde uma
           cascata  caía  por  sobre  polidas  pedras  formando
           pequeno lago.  Em rocha da margem sentava-se um
           ancião, de cabeça descaída, imóvel, tendo por espécie
           de vestuário algumas folhas de árvores. «Deve ter sido
           um náufrago que em tempos aqui veio dar, antes de
           miml) - pensou Sindbad. De olhinhos tristes, encova-
           dos, inexpressivos, muito peludo nos membros, nada
           dizia,  nem correspondeu às  saudações de Sindbad,
           senão com alguns grunhidos, mas parecia pedir ajuda
           para transpor o lago, e colher frutos do outro lado do
           riacho que ali nascia.
               Sindbad, coração tocado pelo infeliz, agachou-se
           perto dele, para o pôr às cavalitas, mas o estranho ser
           logo lhe traçou as pernas em volta do pescoço com tal
           aperto, que não foi possível mais arrancá-lo de lá. Bem   quinhão das cabaças, e  Sindbad não teve outro remé-
           que Sindbad o quis depor no chão, no outro lado das   dio:  privou-se  das que lhe  restavam e  passou-as ao
           rochas  e  do lago,  mas ele  não descia.  Ao contrário,   insaciável ocupante dos seus ombros, que, provando
           parecia  querer comandar  o  mercador,  tal cavaleiro   primeiro, e  gostando com certeza, as emborcou sem
           sobre a montada, e a verdade é que Sindbad não teve   descanso até à  última  gota.
           outro remédio senão levar o  seu escarranchado hós-     Não demorou que os costumados efeitos da espi-
           pede até aos frutos pendentes duma árvore,  de que   rituosa beberagem se fizessem sentir, e  a  alegria do
           o ancião se alimentava avidamente. Mas nem depois   peludo velliote começou a manifestar-se por guinchos
           do primeiro manjar o sujeito quis descer dos ombros   e enormes pulos, não todavia sem o cuidado de manter
           de Sindbad. e  quanto a  manter;) aperto das pernas   dominado  e  seguro  o  seu  poleiro.  Algum  tempo
           em volta do pescoço, parecia que a  refeição lhe dera   depois,  no  entanto,  a  exuberância  cedeu  lugar  à
           ainda redobradas forças  de turquês, com que quase   lassidão, descaía dum lado, descaia do outro, até que
           estrangulava o mercador. Sindbad deu pulos, atirou-  Sindbad deixou de sentir a pressão asfixiante no seu
           -se ao chão, sacudiu o teimoso brutamontes, a tentar   pescoço; atirou o mostrengo ao chão, e, sem piedade,
           libertar-se  dele,  mas  nada.  E  teve  de  se  acomodar   mesmo sem pedir para a alma da estranha criatura a
           àquela  posição  durante  a  noite,  dormindo  o  que  o   compaixão de Alá, agarrou enorme pedra, e com ela
           desconforto permitia, e  o outro sem desentrançar as   esfacelou-lhe  o  crânio.  Depois,  suspirou  de  alivio
           pernas.                                                Procurou percorrer o caminho que primeiro trilhara
               Manhã cedo, a  estranha criatura despertou Sind-  naquela illia, e, com efeito, estava dentro em pouco
           bad com socos insistentes na cabeça, e exigiu passeio   à  vista da praia onde o  vento, as vagas e  o  destino,
           até às árvores dos frutos pendentes onde deu largas   o  tinham despejado, após a  destruição do seu navio
           à  satisfação  de  um  apetite  devorador.  E  assim  se   pelos abutres gigantes. Feliz, encontrou marinheiros
           passou esse dia, e  muitos outros que lhe sucederam,   de um navio que ancorara em bala próxima, e  por ali
           com Sindbad triste e  humilhado por se ver reduzido   procuravam onde refazer a  aguada e recolher alguns
           à  condição  de  burro  de  um  estranho,  para  quem   frescos.
           apenas a  sua bondade e  o  desejo de ajuda o  tinham   Após  os  cumprimentos  e  salamaleques  da  eti-
           compelido.                                          queta, que os identificavam como da mesma língua
              Alimentando-se como e quando o das cavalitas o   e  do mesmo povo, Sindbad contou a  sua desventura
           deixava,  descobriu  umas cabaças já caídas e  secas,   com o ancião que fizera dele sua besta e ama seca, ao
           limpou-as, espremeu para dentro o sumo de uvas que   que os outros soltavam apenas interjeições de espanto,
           encontrou numa vinha próxima, improvisou as rolhas   sobretudo por Sindbad ter escapado vivo, pois da exis-
           e  deixou  tudo  ao  sol,  por  alguns  dias,  até  que  a   tência de tal criatura já eles  tinham ouvido contar,
           fermentação transformou o conteúdo numa espécie de   porém, sempre com a  morte por estrangulamento do
           vinho. Quando bebeu achou-o uma delicia, mas não    infeliz em cujos ombros saltasse, apertando as coxas
           quis alambazar-se,  ficando-se  pelo que julgava sufi-  no pescoço como tenazes fortes e  implacáveis.
           ciente para restaurar as forças. Alegrou-se, no entanto,   Naquela ilha conseguiu Sindbad prover-se de boa
           e  até já o  velho lhe parecia mais leve:  pulava,  dava   porção de cocos, com outros mercadores do navio, por
           palmas, soltava gargalhadas. O das cavalitas, relacio-  um processo singular: arremessando algumas pedras
           nando a bebida com os efeitos, exigiu também o seu   aos macacos, ripostavam estes, por imitação, com os
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