Page 98 - Revista da Armada
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A princesa e a duquesa da Terceira pararam. A enveredou pelo teatro, arte em que se estreou fazendo
filha de V/tor Manuel, achando tanta graça ao pequeno um pequeno papel na peça ICTrapeiros de Lisboa», no
pajem adormecido, fez um sinal, para que não me acor- Teatro Baquet do Porto.
dassem, foi dentro e trazendo uma porção de bom- Nesta sua nova profissão, Eduardo Brasão colhe·
bons, colocou·mos no colo e deu um beijo nos lindos ria os louros da sua extraordinária vocação para o
caracóis doirados do pajenzinho que fingia continuar palco, sendo essencialmente um actor de comédia e
a dormir, recolhendo por fim aos seus aposentos. de alta-comédia. Ficaram célebres as suas interpreta-
(. . .) Recolhi ao meu beliche, triste por não encon- ções, entre outras, do Cardeal Rufo na !lCeia dos
trar o espadim, que tinha desaparecida. Cardeais», do Monsenhor na ctMadrugadall, do Eduardo
Mas qual não foi a minha surpresa, quando, no dia no ttEnvelhecer». Também desempenhou papéis de
seguinte, o general Caula mo entregou, dizendo-me grandes vultos da nossa História, tais como Afonso VI,
asperamente: «.Para a outra vez segure-o com mais cui· duque de Viseu, Afonso de Albuquerque e D. Fer-
dado, pois ia matando o meu impedido». O espadim nando, que ficaram na memória dos que tiveram a
escorregara por uma grelha do sobrado indo cair, felicidade de os apreciar.
felizmente, de punho para baixo, na cara do impedido Já gravemente enfermo, Brasão despediu·se do
do general Caula, que estava dormindo beatifi- seu amado público numa récita no Teatro de S. Carlos,
camente. ao lado da grande Lucinda Simões, no dia 24 de
Talvez a dureza da vida do mar ou o receio da rigi- Novembro de 1924.
dez da disciplina militar tenha ievado Eduardo Brasão A finalizar, poder-se-á dizer que se perdeu, talvez,
a experimentar nova profissão. Então, possivelmente um mau marinheiro ... mas ganhou-se, com certeza, um
Influenciado pelos teatrinhos da Rua dos Fanqueiros grande actor!
- local onde se situava a loja de seu pai - que já
conhecia, cuja frequência fora interrompida pelos M. Horta,
cinco anos que dedicara à Marinha, o jovem Brasão ssrg.-aj. L
E, afinal, falam
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queles que não aceitam que os mim junto de um enorme buraco, que
mortos pensam, falam e apare- punha à vista uma vetusta construção de
Acem no mundo dos vivos, estão pedra, constituída por grandes degraus,
redondamente enganados. O que acon- que sugeriam a bancada de um estádio
tece, e disso não temos a mais pequena romano. Enquanto olhava, intrigado.
dúvida, é que a maior parte das vezes, para a minha descoberta, a voz, a tal voz,
eles não são ouvidos, nem são vistos. Na sumida, ganhou alento, e disse:
realidade, os sinais de vida daqueles que - Não me ouves?
já se alhearam deste mundo - podem Olhei à minha volta, não vi ninguém.
não acreditar - surgem constantemente A voz insistiu:
aos nossos olhos, aos nossos ouvidos. - Não me ouves?
Ainda há dias, uma notícia chegada - Sim, sim estou aouvir, mas quem
do Oriente, nos dizia que tinham apare- és tu? - respondi eu, atónito.
cido os restos da «Frei de la Mar-, o - Sou Bartolomeu da Costa, briga-
famoso navio do, não menos famoso, deiro e construtor desta obra. Um dique.
&lnoJomt!u da COSta. brig(J(ltiro t COfISlrulOr do
Afonso de Albuquerque. Não é isto uma diqut do Arstnal da MarinluJ. O célebre dique do Arsenal da Marinha.
prova de que este grande português está que O urbanismo, essa moléstia impla-
vivo? Ou então, leiloa-se em Nova cável, fez desaparecer.
Iorque um astrolábio náutico feito em quando arrumava o carro no parque de - Eu sei quem és. Foste tu que
Lisboa por João Dias, e que foi encon- estacionamento da Marinha. Um impor- fizeste a estátua equestre de D. José I.
trado no galeão espanhol «Nuestra Seno- tante desafio de futebol estava a ser trans- que está aqui mesmo ao pé de nós, no
ra de Atocha .. , afundado nas costas da mitido pela televisão. Na Avenida da Terreiro do Paço.
Florida em 1622. Isto acontece por Ribeira das Naus, sempre barulhenta, - Sim. O autor do gesso foi Macha-
acaso? Ou não será uma voz do túmulo não passava uma viatura. Não se via uma do de Castro, mas fui eu que fundi aquela
a lembrar que, naquela época, a alta alma, a não ser, muito triste, o guarda enonne massa de bronze, de um SÓ jacto.
tecnologia portuguesa, em matéria de d~ serviço ao portão Sul. O Sol estava percebes, uma operação que, na época,
navegação, era considerada além- no ocaso. e o silêncio era tal, que me fez nem na grande França se fazia. Pareces
-fronteiras? ouvir um murmúrio. Saf do carro, apro- admirado; não acreditas em mim?
Não é, porém, necessário ir tão ximei-me do local donde vinha esse - Não, não é esse o caso - repli-
longe. Notem bem, o que se passou rufdo, que, afinal. era uma voz sumida, quei eu . - É que li algures que o teu
comigo, há algumas semanas atrás, cansada, quase imperceptfvel. Dou por corpo repousava no Mosteiro dos JereS-
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