Page 14 - Revista da Armada
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zim,  uma carta  em  .que  relala  um   De  Manuel  Lagarto,  ex-mar.   .Uige.,  armado  em  transporte  de
             episódio vivido a bordo do .Gonçal-  FZE, Veiros, uma carta em que, roi-  tropas.
             ves Zarco», noutra viagem de Macau   do de saudades. recorda uma comis-  Fui  encontrar,  nas  Instalações
             para Lisboa, em Abril de 1964, que   são que ambos vivemos  na Guiné,   Navais de  Bissau - aquartelamento
             resumimos assim: ao largo de Cei-  durante a guerra do ultramar. Diz ele   do  pessoal  - um  caso humano,  ao
             lão,  uma  praç,  foi  acometida  de  que uma filha que estava a ver o tele-  mesmo tempo triste e curioso.
             apendicite aguda, que exigia pronta  -jornal o chamou porque estavam a   Vi-o pela mão de um marinheiro
             Intervenção  cirúrgica  pois  eslava   passar uma bela reportagem da en-  fuzileiro que eu já conhecia e se cha-
             prestes a originar peritonite. Segun-  trega  do  comando do naviCH3scola   ma Lagarto. Um pretinho muito novo
             do o médico, não havia tempo para  .. Sagres .. e sabia que ele gostava de   - 3 ou 4 anos - com uns olhos enor-
             arribar a qualquer porto, propondo-  ver. Falou  então à  filha  dos navios   mes,  vestido  de  camuflado,  boina
             -se operar o doente a bordo, solução  que conhecia - além da _Sagres .. , os   preta. tal como os fuziteiros. Não fala
             com que o comandante concordou.   que estiveram no seu terRpo na Gui-  a  ninguém,  nem  obedece  a  outra
             Posto o navio a navegar devagar e  né, ou apenas lá foram - nos cama-  pessoa  que  não  seja  o  Lagarto.
             ao  rumo  que  menos  balanço  cau-  radas  fuzileiros,  nos  oficiais  e   Quando  este  lhe  ordenou  que  me
             sava, médico,  enfermeiro e 2  mari-  comandantes, nas acácias rubras ...   cumprimentasse. pós-se em sentido.
             nheiros voluntários  para os  ajudar,   mostrou  fotografias, etc.   fez  a  continência  e  só  retomou  a
             lahçaram  mão à  obra, como é  evi-  E  no 'fim  daquele  serão  com  a   posição  de  .à-vontade.  quando  o
             dente,  em  condiçOes  muito  precá-  filha, resolveu escrever-me uma car-  Lagarto disse:  ..Já chega •.
             rias.  Durante  pouco  mais  de  uma  ta para recordar os belos tempos da   Quem é ele? Quem são os pais?
             hora ninguém falou a bordo, aguar-  Marinha e da amizade e sã camara-  Sabe-se lá ... Foi encontrado a cho-
             dando  ansiosamente  o  resultado.  dagem que reinava em todos os que   rar, escondido num renque de arbus-
             O  calor  era  muito  e  os  ajudantes  serviam na Marinha da Guiné, entre   tos, perto de uma tabanca destruida
             tiveram grande faina a limpar a cara   todos  os  escal6es  da  hierarquia.   pelos fuzileiros. O Lagarto pediu ao
             do  médico  e  do  enfermeiro  que   Li  a  carta com  toda  a  atenção,   comandante, e trouxe-o para Bissau.
             escorriam  suor.  Ao  fim  e  ao  cabo   como faço com todas as que nos são   Andou 20 quilómetros às costas de
             tudo correu bem e a guarnição res-  enviadas, e o nome de Lagarto não   uns e outros.
             pirou de alívio quando os microfones   me  era  estranho  e  lembrava-me   Tem uns olhos tristes, uns olhos
             anunciaram o completo êxito da ope.-  qualquer coisa. Fui então às minhas   que  procuram  alguém  que  n:lo
             ração.  ~ nestas e noutras ocasi6es   memórias, escritas na altura, e aqui   encontra,  que  certamente  jamais
             diflceis,  diz o autor da carta, que o   vai o que  lá consta:      encontrará  ... Diz o Lagarto que, nas
             mar nos une em fraterna e sã cama-   .Depois  de  ter  regressado  de   primeiras noites não dormia, a cha-
             radagem,  que  só  os  marinheiros   uma comissão de serviço na Guiné   mar pela mãe.  Agora já não chora,
             sentem.                           - 66/68  -,  voltei  lá  em  69,  como   nem  chama  a  mãe,  mas  os  seus
                            *                  capitão-de-bandeira  do  paquete   olhos continuam a procurar e inter-
                                                                                 rogar:
                                                                                     Como vim aqui parar? Que é que
                                                                                 me  aconteceu?  Porque  são  os  ho-
                                                                                 mens tão  maus?
                                                                                     O Lagarto já o .registou ...  Ficou
                                                                                 com o nome de Jorge Afonso Cris-
                                                                                 plm  de  Brito.  Porquê  este  nome  e
                                                                                  não outro? Jorge é o nome de um afI-
                                                                                  lhado  do  oficial  que  comandava  o
                                                                                 grupo de assalto, e de que ele gosta
                                                                                  muito; Afonso é o nome do marinhei-
                                                                                  ro fuzileiro que o carregou às costas
                                                                                 durante a maior parte do percurso;
                                                                                 Crlspim  é  o  do  marinheiro-telegra-
                                                                                  fista, que . achou. o miúdo; e, final-
                                                                                  mente, Brito é o apelido do coman-
                                                                                 dante do grupo de assalto.
                                                                                     O  resto  contou-mo agora o  la-
                                                                                 garto: ( ... ) este pretinho, mais tarde,
                                                                                 encontrou um segundo pai. Foi per-
                                                                                  filhado  pelo  major Passos  Ramos,
                                                                                  um excelente homem que viria a ser
                                                                                  morto  numa  emboscada  perto  de
                                                                                  Teixeira Pinto. E nada mais sei acer-
                                                                                 ca desse  meu estimado protegido,
                                                                                  vItima  Inocente  duma  guerra  san-
                                                                                 grenta que tanto mal fez e  tão mal
                                                                                 acabou (  ... )
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