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A MARINHA DE D. MANUEL (25)



           O exercício do poder naval e a procura do
           O exercício do poder naval e a procura do

                                      Domínio do Mar
                                      Domínio do Mar



               epois da segunda viagem de Vasco  Oriente, e a multiplicidade de componentes  outra a apoiava-a com tenacidade, identifi-
               da Gama à Índia é mais fácil com-  que era preciso controlar para o obter. Os  cando-a com o caminho necessário ao país.
         Dpreender o verdadeiro significado  navios portugueses eram mais poderosos e  O Conselho do Rei desaprovou estas via-
         da intitulação de D. Manuel como “Senhor  dispunham de melhor artilharia do que  gens e conhecem-se alguns dos argumentos
         da conquista, navegação e comércio da  qualquer outro poder rival, na Índia. Mas  utilizados, que andavam à volta da falta de
         Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia”. No fim de  isso era apenas um dos factores em jogo  meios para uma empresa tão longínqua,
         contas não era senhor de nenhuma terra em  (neste caso favorável aos portugueses): era  quando aqui mesmo ao pé – no Norte de
         especial, nem tinha súbditos                                                     África – a guerra aos mouros
         definidos, mas arvorava-se                                                       parecia igualmente digna, e
         com direito a controlar um                                                       fundamental para a defesa
         movimento marítimo num                                                           da cristandade no Mediter-
         espaço que engloba toda a                                                        râneo. Eram, de facto, duas
         parte ocidental do Oceano                                                        alternativas possíveis: a
         Índico. Digamos que é uma                                                        primeira é olhada como a
         originalidade muito grande                                                       dimensão visionária de um
         para uma Europa habituada                                                        certo tipo de português,
         a que o poder assenta numa                                                       capaz de sonhar com mun-
         base territorial. Mas obser-                                                     dos que vão para além do
         vemos com mais atenção o                                                         seu espaço imediato; e a
         que fez o Almirante na Costa                                                     segunda, talvez mais rea-
         do Malabar, para afirmar                                                         lista, é aquela que mede as
         esta “senhoria da conquista,                                                     consequências de projectos
         navegação e comércio”. À                                                         demasiado ambiciosos. Mas
         partida – e isso já foi dito –                                                   parece-me a mim que a colo-
         Calecut é o principal porto                                                      cação do problema nesta
         de comércio da pimenta, que  Carta do Índico de Anónimo e de Pedro(?) Reinel, 1522.  antinomia é dar uma ideia
         lhe vem de plantações no                                                         redutora do que estava real-
         interior. O Samorim, ao saber da disposição  preciso conhecer as monções; as derrotas do  mente em causa, quando foi decidido con-
         do rei de Cochim e Cananor em vender a  Malabar e do resto do Índico; perceber os  tinuar a viajar para o Oriente e estabelecer o
         especiaria aos portugueses, tratou de movi-  jogos políticos entre os diferentes sobera-  domínio do Oceano Índico. O tipo de poder
         mentar as suas influências para fazer  nos; entender aspectos culturais para evitar  que D. Manuel quer exercer à distância,
         escassear esse produtos nas cidades rivais, e  conflitos insanáveis (o que nem sempre  sobre os mouros do Oriente, é uma nova
         tentou sempre escoá-lo para o mercado  aconteceu); conhecer a rota das mercado-  forma de exercício do poder, que não exige
         tradicional, a caminho do Médio Oriente.  rias comerciáveis no Ocidente e das que  (por si só) mais meios do que um povoa-
         Numa primeira fase, Vasco da Gama não  eram essenciais à sobrevivência de certos  mento militar do Norte de África. O que
         conseguiu carregar os navios, mas a sua  potentados da região (como era o caso do  exige é outra maneira de actuar, que podia
         acção foi de sistemático bloqueio a Calecut,  arroz); e, enfim, jogar com tudo isto para  não ser absolutamente clara para homens
         impedindo assim todo o movimento maríti-  exercer o tal domínio do mar, que era o objec-  como Gama ou Cabral, era no entanto
         mo do seu inimigo. Com o passar dos  tivo de D. Manuel, bem expresso no título  totalmente incompreensível para a maioria
         meses, conseguiu até carregar alguns  de “Senhor da conquista, navegação e  dos fidalgos europeus, por mais experien-
         navios em Coulão (a sul de Cochim),  comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia”.  tes que fossem em questões de guerra.
         trazendo para Lisboa quase 30 000 quintais  Menos de um século depois dos aconteci-  Compare-se a actuação de Vasco da Gama
         de especiarias (1512 toneladas). Acreditou o  mentos aqui relatados Walter Raleigh  em 1502-1503, com as normais campanhas
         Samorim que, ganhando tempo, acabaria  escrevia que “Aquele que controla o mar,  militares até aí levadas a cabo na Europa
         por fazer cair os portugueses na armadilha  controla o comércio; e aquele que controla o  (mesmo aquelas que envolviam navios). As
         da monção, deixando-os presos na costa in-  comércio controla tudo”. Este pensamento  condições da vida e do conhecimento no
         diana, em grande risco de perderem os  foi muito bem compreendido pelos pen-  início do século XVI ainda não convidavam
         navios. Se isso tivesse acontecido, era muito  sadores de estratégia naval, do século XIX e  à reflexão geopolítica teórica e elaborada,
         provável que D. Manuel não voltasse a  XX, e não é absurdo pensar que algo de  que permitisse a estruturação duma doutri-
         enviar mais expedições à Índia, e a empresa  semelhante esteja subjacente à forma como  na estratégica clara, e foi na prática do exer-
         morreria à nascença. Tal não aconteceu  os portugueses operaram no Índico, no iní-  cício do controlo do mar e na busca do seu
         porque Vasco da Gama, apesar de sair tarde  cio do século XVI.        domínio que se foram aprendendo e apli-
         do Malabar, ganhou tempo com uma rota  A discussão política do século XV e XVI,  cando algumas noções fundamentais,
         directa a Moçambique, muito mais curta  em Portugal, colocou em confronto duas  como iremos ver proximamente.
         que o caminho tradicional dos roteiros  posições em face da expansão: uma delas
         árabes. Mas o que importa salientar é a  via a empresa da Índia como uma loucura,        J. Semedo de Matos
         ideia de exercer um domínio do mar no  muito para além das capacidades do país; e                 CFR FZ

         20 MAIO 2002 • REVISTA DA ARMADA
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