Page 225 - Revista da Armada
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absolutamente fora da restante escala, e com informações de latitudes
                                                              em unidades de medida árabes, levando a acreditar numa troca de
                                                              informações entre os pilotos portugueses e os do Índico.
                                                               O núcleo dos Produtos mostra alguns dos objectos (ou suas repre-
                                                              sentações pictográficas) que alimentaram o intenso comércio decor-
                                                              rente das viagens portuguesas até África e Oriente: trabalhos de
                                                              madrepérola, tartaruga e prata, potes para especiarias, moedas de
                                                              todos os tipos e figuras em marfim. Também não foram esquecidos os
                                                              animais exóticos e o impacte que tiveram na Europa, podendo ver-se
                                                              uma xilogravura de Albercht Dürer representando um rinoceronte, e
                                                              um desenho a lápis e pena do célebre elefante Hanno, oferecido por
                                                              D. Manuel ao Papa, na embaixada que lhe enviou em 1514.
                                                               Seguia-se o quinto núcleo – Técnicas – com a exposição de docu-
                                                              mentos relativos à arte de navegar, à construção naval e ao arma-
                                                              mento utilizado. Devo salientar o magnífico quadro pertencente ao
                                                              National Maritime Museum de Greenwich, onde estão repre-
         Planisfério de Henricus Martellus Germanicus - British Library.  sentadas naus, caravelas e galés portuguesas, da armada que, em
                                                              1520, levou a Ville-Franche sur Mer a princesa Dª Beatriz, filha de
         1579. Não pode deixar de se falar ainda das tábuas do Mar  D. Manuel. É uma obra de escola portuguesa, de incontestável
         Vermelho, da autoria de D. João de Castro, que constituem um pre-  beleza, e com um rigor representativo que ajuda a resolver muitas
         cioso trabalho de hidrografia, com perfis de costas para um melhor  dúvidas sobre a construção naval portuguesa do século XVI, o
         reconhecimento visual, e representações de vários tipos de navios.  aparelho dos navios e até a manobra dos mesmos. A figura cen-
         Todavia, as obras que mereceram mais notoriedade, foram, sem  tral é uma enorme nau – que se pensa ser a S.ta Catarina do Monte
         dúvida, o planisfério de Henricus Martellus Germanicus e o lendário  Sinai – pavesada, navegando com amuras a bombordo, a vela
         “Cantino”: o primeiro contém a primeira figuração da África, poste-  grande com duas monetas, pessoal na verga na grande e na
         rior à viagem de Bartolomeu Dias (1487-88), e com dados que dela  gávea, e salvando aos navios que se aproximam.
         provêm; e o segundo é a primeira representação do mundo com uma  A exposição termina com o sexto núcleo, cujo título e tema –
         coerência que está muito próxima da realidade. O “Cantino” (como é  Crenças e Motivações – me pareceu escasso, para dar uma ideia da
         impropriamente conhecido este mapa) é a verdadeira jóia da
         exposição, quer pela sua riqueza geográfica e iconográfica,
         quer pela história deste mapa português anónimo, que hoje
         está na biblioteca Estense de Modena (Itália). O planisfério foi
         encomendado em Lisboa por Alberto Cantino (representante
         do Duque de Este em Portugal), no princípio do século XVI, à
         revelia de todas as instâncias oficiais, e mediante o pagamento
         de uma avultada quantia que deveria subornar o/os mestres
         cartógrafos. Foi levado para Itália em Novembro de 1502
         (disso se sabe por documentos que a ele se referem) e nunca
         mais regressou à terra que o viu nascer. Tudo indica que seria
         uma cópia (mais ou menos correcta) do padrão real, que era
         mantido e actualizado em Lisboa, e de que apenas se tem notí-
         cia por referências documentais. Para além da sua beleza artís-
         tica, a importância histórica deste mapa é extraordinária, e  Planisfério Português anónimo, “Cantino” - Biblioteca Estense - Modena.
         deduz-se das preciosas informações que ali se colhem, sobre o
         nível dos conhecimentos geográficos portugueses, no princípio do  maneira de ser do Homem português daquele tempo. De certo
         século XVI. O “Cantino” é o primeiro mapa onde estão re-  modo, encerrou as “mentalidades” dentro do sentimento religioso e
         presentados o Equador e os dois Trópicos, presumindo uma escala  deixou-o historicamente incompleto, privando-o de outras facetas
         de latitudes deduzida do afastamento entre estas linhas. Para além  do Renascimento Português. Mas não deixou de cuidar do valor
         disso, nele se encontra um esboço da costa brasileira que já denuncia  artístico dos materiais expostos, e talvez que seja essa uma das
         a presença do continente americano, cruzado na foz do rio  razões para a restrição temática, uma vez que é na expressão artísti-
         Amazonas, pelo meridiano de Tordesilhas, que, como sabemos, era o  ca religiosa que se encontram os melhores exemplares da pintura,
         limite atlântico entre as explorações portuguesas e castelhanas. A  escultura e, neste caso, ourivesaria. Pudemos ali apreciar alguns dos
         África aparece com um rigor incomparável, apesar de ter sido total-  melhores quadros portugueses daquele século – um deles é o co-
         mente contornada, poucos anos antes da feitura do mapa. E o  nhecido “S. Pedro”, de Grão Vasco, pertencente à capela de S. Pedro,
         Oriente, para lá da Índia, surge desenhado com contornos largos,  da Sé de Viseu – enquadrados com uma fonte em pedra, algumas
                                                              salvas em prata, o célebre relicário de Dª Leonor (do Mosteiro da
                                                              Madre de Deus), e a custódia de Belém, feita por Gil Vicente.
                                                                Toda a exposição me pareceu uma preciosa jóia, onde sobres-
                                                              saem objectos como o “Cantino”, o quadro de Greenwich ou a
                                                              custódia de Belém. Se há núcleos que não brilharam tanto como
                                                              outros, isso, de maneira nenhuma ofuscou o valor global do que,
                                                              pode dizer-se, ter sido a chave de ouro da Comissão Nacional para as
                                                              Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.

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                                                                                                           CFR FZ
                                                              Notas
                                                                (*) Não vou fazer uma descrição exaustiva da exposição, com enumeração de
         Navios Portugueses - National Maritime Museum - Greenwich  todos os objectos, falando apenas dos que me pareceram mais significativos.
                                                                                        REVISTA DA ARMADA • JULHO 2002  7
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