Page 304 - Revista da Armada
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A MARINHA DE D. MANUEL (29)



         Um momento decisivo no domínio do Índico
         Um momento decisivo no domínio do Índico




               o ano de 1503, quando saíram de  Baía de Santa Helena, que é a referência do  em Mombaça, Zanzibar, e exploraram a
               Lisboa as esquadras de Afonso e  texto anónimo (provavelmente por ser a  entrada do Mar Vermelho, onde sentiram
         NFrancisco de Albuquerque, man-    referência já conhecida, desde a primeira  grandes dificuldades para reabastecer de
         dou D. Manuel que zarpasse uma outra  viagem do Gama). Até aqui os navios  água. Em Setembro de 1504, a armada de
         armada de três navios, que levava como  seguiram juntos, mas é muito provável que  Lopo Soares de Albergaria foi encontrá-los
         Capitão-Mor António Saldanha, fidalgo  se tenham perdido na passagem do Cabo e  em Angediva e levou-os para Cananor.
         castelhano que servia na corte de D. Manuel  que esse facto tenha confundido os cro-  Penso eu que nesta altura, depois de ter
         desde há alguns anos. Acompanhavam-no  nistas do século XVI, que perdem um  observado a acção das armadas da Índia
         Rui Lourenço Ravasco e Diogo Fernandes  pouco da sequência dos acontecimentos e  desde a primeira viagem de Vasco da
         Pereira (ou Piteira), que se supõe ser de  relataram sem nexo, factos esparsos de que  Gama, e sabendo como se processava o
         Setúbal, notável pelo seu conhecimento e  tiveram conhecimento. O relato de que  comércio tradicional do Índico naquele
         experiência na faina do mar. As fontes                                  tempo, já é possível encontrar um nexo
         mais conhecidas não são muito coerentes                                 de acção complementar entre as armadas
         na descrição dos pormenores do que                                      que iam até à entrada do Mar Vermelho
         aconteceu com esta esquadra, na sua                                     – procurando apanhar as “naus de
         viagem até ao Oriente, mas todas apon-                                  Meca”, no seu local de passagem obri-
         tam para a hipótese de que um erro de                                   gatória – as que ficavam na Índia dum
         navegação na volta do mar do Atlântico                                  ano para o outro, e as que repetidamente
         Sul fez com que os navios aterrassem                                    saíam do reino, por alturas de Março ou
         antes do Cabo da Boa Esperança, numa                                    Abril, para irem à Índia e voltarem car-
         pequena baía que ficou depois conhecida                                 regadas de especiaria. Juntemos-lhe a
         por Aguada de Saldanha (hoje Saldanha                                   ideia (que já havia) de que por Sofala saía
         Bay, em 33º 03’S, 17º 55’E). Gaspar                                     uma enorme quantidade de ouro, que
         Correia, nas Lendas da Índia, vai ao ponto                              circulava por todo o Índico, e era funda-
         de afirmar que, a partir dessa baía, a                                  mental no negócio das especiarias, e
         armada já não conseguiu dobrar o Cabo,                                  ficaremos com uma visão global de uma
         e viu-se obrigada a regressar a S. Tomé                                 parte do comércio oriental, concerteza
         para retomar a volta do mar, mas é óbvio                                muito aproximada da que se ia forman-
         que esta hipótese não tem nenhum cabi-                                  do em Lisboa. Vendo a situação numa
         mento, não sendo confirmada por Barros,                                 perspectiva estratégica, e atendendo a
         Castanheda ou Góis. Bastava pensar que                                  que o objectivo era o domínio do comér-
         Vasco da Gama, na sua primeira viagem,                                  cio marítimo, verificaremos que alguns
         entrou na baía de Santa Helena, ainda                                   passos decisivos já tinham sido dados:
         mais a norte que a Aguada de Saldanha,                                  D. Manuel tinha a noção de alguns locais
         e conseguiu demandar o Cabo em menos                                    chave que importava controlar, sabia
         de uma semana, com dois bordos ao mar.                                  como navegar no Índico, conhecia alguns
         Mas, mesmo pondo de parte esta   A Armada de Lopo Soares de Albergaria (1504)  dos seus inimigos e as suas capacidades,
         hipótese absurda de Gaspar Correia, o                                   e procurava delinear um plano de acção,
         percurso de Saldanha e dos seus compa-  falamos e que constitui um testemunho  com vista a estabelecer aí a sua soberania.
         nheiros só ficou perfeitamente esclarecido  coevo, diz-nos que os navios de Rui  A armada de Lopo Soares de Albergaria,
         com a publicação por A. Teixeira da Mota  Lourenço e Diogo Fernandes saíram juntos  levava treze naus que passaram por
         dum relato anónimo desta viagem, acom-  de Angra de S. Brás e seguiram para norte:  Cananor, e seguiram até Cochim e Coulão
         panhado de um pequeno estudo sobre o  o primeiro ficou à espera de Saldanha em  para carregar especiaria. Mais uma vez
         mesmo. O texto original foi escrito por  Moçambique, mas o outro continuou o seu  Calecut foi atacada pela artilharia por-
         alguém que embarcou no navio de Diogo  caminho ao longo da costa africana, passan-  tuguesa e duas esquadras inimigas foram
         Fernandes, e pertencente a uma compilação  do por Melinde e Mogadíscio. Nesse ano já  derrotadas em Cranganor e Pandarane.
         existente hoje na Biblioteca Nacional de  não conseguiu atravessar para a Índia por  Quando regressou ao reino, deixou como
         Florença efectuada no século XVI por um  ter perdido a Monção favorável, mas fê-lo  Capitão-Mor dos mares da Índia Manuel
         veneziano de nome Alessandro Zorzi.  em 1504, sabendo-se que passou por Brava  Teles de Vasconcelos, que assim substituía
         Segundo o mesmo, os navios saíram de  e Socotorá,  chegando a Cochim em 18 de  Duarte Pacheco Pereira. Cochim começava
         Lisboa a 14 de Março de 1503, passaram por  Maio de 1504, quando Duarte Pacheco  a ser visto como a base fundamental da
         Tenerife e Santiago, deixando-se depois  Pereira defrontava ferozmente os ataques  actuação portuguesa no Oriente e, dentro
         ensacar no Golfo da Guiné, onde a corrente  do Samorim de Calecut.    em breve, a própria organização militar e
         os arrastou até à ilha de S. Tomé. A partir  A actividade dos navios de Saldanha e Rui  comercial iriam ganhar uma outra con-
         daí, as dificuldades para retomar a rota do  Lourenço está, naturalmente, ausente deste  sistência, com a nomeação de um Vice-Rei.
         Cabo eram, naturalmente, muitas, mas foi  relato, sempre que os mesmos se afastaram  Mas a seu tempo veremos como tudo se
         decidido rumar à costa africana, passando o  de Diogo Fernandes, mas deduz-se de todas  passou.
         Cabo de Santa Catarina, e retomando,  as outras crónicas que devem ter andado
         então, a volta do mar, que os levaria até à  pela costa oriental africana: passaram por  J. Semedo de Matos
         Aguada de Saldanha, um pouco a sul da  Quíloa e Melinde, impuseram  o seu poder                   CFR FZ

         14 SETEMBRO/OUTUBRO 2002 • REVISTA DA ARMADA
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