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D. João III e a sua Época
D. João III e a sua Época
Um Período Sombrio da História de Portugal?
o dia 6 de Junho de 1502 nascia em monarquia portuguesa (4). Se
Lisboa aquele que mais tarde veio a de início, depois do seu fale-
Nser rei de Portugal com o título de D. cimento e durante sensivel-
João III, fruto do matrimónio de D. Manuel I mente três séculos, reinou
com D. Maria, filha dos “reis católicos”. (1) algum consenso em redor da
Na câmara da rainha, saudando o nasci- sua figura e do seu governo,
mento do príncipe, Gil Vicente representa o o mesmo já não se pode afir-
“Auto da Visitação” ou “Monólogo do mar sobre alguns estudos
Vaqueiro”, verdadeira certidão de nascimen- que vieram a prelo durante o
to do teatro português, augurando uma século XIX.
época gloriosa, como poucas, para a cultura As obras historiográficas,
portuguesa. tal como aqueles que as pro-
Em Outubro de 1503 o príncipe é jurado duzem são um reflexo do seu
herdeiro do trono nos paços do castelo, pe- tempo, do meio em que são
rante os altos dignatários do reino reunidos concebidas e das correntes
em sessão de cortes. culturais dominantes. Quer
O futuro rei teve como mestres os mais isto dizer, que o clima ideo-
reputados homens de cultura do seu tempo. lógico e político influi nas
O ensino das primeiras letras foi entregue a ideias e nas concepções de
Álvaro Rodrigues; o aperfeiçoamento da cada autor, que, por sua vez,
escrita a Martim Afonso; a Tomás Torres, transporta frequentemente
médico e astrólogo, coube a Matemática; e para o passado os seus va-
ao humanista Luís Teixeira em conjunto com lores, as suas crenças e as
o Bispo de Viseu, D. Diogo Ortiz de Villegas, suas representações mentais,
o ensino das Humanidades. depositando-as nos escritos
A partir de 1514 o príncipe D. João consti- que dá à luz.
tui casa própria. O rei «vey a dar casa ao D. João III. Alexandre Herculano,
principe e ordenarlhe os officiais que lhe Antero de Quental, Pinheiro
erão necessários pera ella.»(2) registe-se os 22 anos de Carlos V, os 28 de Chagas ou Braamcamp Freire foram alguns
Finalmente, a 19 de Dezembro de 1521 é Francisco I, rei de França, e os 31 de dos historiadores e pensadores que, ao longo
aclamado rei. O seu pai, que falecera dias Henrique VIII, rei de Inglaterra. É esta geração do século XIX, levantaram violentamente a
antes, deixara nas suas mãos o governo de de jovens monarcas que domina a política sua pena para denegrir D. João III e a sua
um extenso império, espalhado por todo o europeia durante a primeira metade do sécu- governação. Toda essa produção literária
Mundo conhecido. Também os seus sete lo XVI e a conduz ao princípio de uma nova surgiu quando estava em curso a construção
irmãos – que tinham idades compreendi- ordem, estabelecida, mais tarde, no Tratado (1820-1880) e posterior crise (1880-1910) do
das entre os 18 anos da futura imperatriz de Cateau-Cambrésis, a 3 de Abril 1559, pre- Estado Liberal oitocentista. Na sua maioria
D. Isabel e os 6 meses da infanta D. Maria cisamente dois anos após o falecimento de liberais, defendendo um Estado laico, pu-
– ficavam sob sua responsabilidade. D. João III . gnando por reformas céleres no campo da
Entretanto, corriam rumores insistentes que organização económica e social, censuravam
davam como certo o casamento do soberano I de forma assaz veemente as estruturas do
com a jovem rainha viúva, D. Catarina, com As descrições que os cronistas nos legaram Antigo Regime, concentrando no passado o
apenas 23 anos, sua madrasta, que em tem- acerca do perfil físico do novo rei, retratam seu descontentamento, a sua ira, as suas
pos lhe estivera prometida, para desposar, um «principe de meã estatura, mais grosso angústias e, por consequência, atribuindo à
não fosse a antecipação de seu pai. O grande que delicado, de presença alegre e autoriza- História uma função adicional: a de História-
jogo diplomático entre os dois reinos da, tinha o rosto aluo, e com muy boa cor -Tribunal.
peninsulares e as vicissitudes do xadrez nelle; a testa larga, os olhos antre verdes e No que diz respeito a D. João III, criti-
político europeu, ditariam outro desfecho. azues, conformes ha proporção do rostro, cavam, por exemplo, a sua lentidão na toma-
A escolha da nova rainha acabou por recair pestanudos desabafados das sobrancelhas, e da das decisões políticas, sem problemati-
em D. Catarina de Áustria, irmã mais nova com perfeyta vista, alegres, de boa sombra e zarem o panorama político nacional e inter-
de D. Leonor e de Carlos V, rei de Espanha bom acolhimento, mas dentro dos limites da nacional da época; apontavam o dedo acu-
e simultaneamente Imperador do Sacro seueridade e grauidade, que se requeria em sador à introdução e estabelecimento da
Império Romano Germânico. sua pessoa, tinha o nariz compassado, a boca Inquisição em Portugal e não explicavam o
No auge da sua vitalidade, aos 19 anos, meam, os beiços vermelhos, o pescoço que estava verdadeiramente em jogo: a unifi-
D. João governava, um reino europeu pe- algum tanto menos saido ha proporção do cação artificial do corpo social, o triunfo do
riférico, mas virado para o mar e com corpo [...].»” (3) absolutismo; mostravam, em paralelo, a sua
múltiplos interesses à escala de um globo, O retrato, com carácter minucioso, deixa- posição contrária ao facto do dito rei ter per-
desbravado em grande parte por compa- do pelos cronistas não obstou a que, poste- mitido a entrada dos Jesuítas e sucumbido
triotas seus. riormente, muito se viesse a escrever e a afir- aos ideais da Contra – Reforma, apelidando-o
Há, sem dúvida, por estes tempos uma mar sobre a figura e a acção de D. João III. de “beato” e “piedoso”, mas não indicavam
nova geração que se apodera dos destinos da Não é exagero considerar que é, este, um dos as tomadas de decisão, possíveis, numa
Europa. Além de D. João III, como já citado, soberanos mais biografados da história da Europa fragmentada religiosamente; outros,
16 SETEMBRO/OUTUBRO 2002 • REVISTA DA ARMADA