Page 307 - Revista da Armada
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ainda, como Herculano estigmatizavam o compõem os ciclos da vida económica. Mas, depois de Martinho Lutero ter iniciado, em
excessivo centralismo absolutista, impresso de facto, o que nos interessa demonstrar, 1517, um movimento reformador. As contes-
na governação joanina, em oposição à idade muito particularmente, é que no espaço tem- tações de cariz religioso crescem de intensi-
de ouro do poder local concelhio durante a poral abrangido pelo governo de D. João III dade e proporção, enfraquecendo a posição
Idade Média. quando uma depressão faz a sua erupção, do papado e a sua influência europeia.
Num reinado que durou mais de 30 anos sucedem-se implicações nefastas para o apa- A última depressão, a atingir o reinado do
não é certamente fácil fazer uma síntese de relho do Estado e para a economia do “piedoso”, apelidada de «viragem estru-
todos os acontecimentos tural», verifica-se entre
que o nortearam, para 1545/7-1551/3. Com
mais quando se está pe- efeito, o Império Portu-
rante uma época tocada guês, depois desta crise,
por uma renovada afir- não voltará a ser o
mação do Homem no mesmo. São seis anos de
Mundo, e se assiste à mudanças lancinantes.
explosão de quatro “movi- Desde logo, como resulta-
mentos”, simultâneos, de do do aparecimento de
âmbito cultural, social e uma nova potência – os
religioso: os Descobri- Xarifes do Suz - desenha-
mentos, o Humanismo -se o fim do domínio lusi-
Renascentista, a Reforma e tano sobre certas cidades
a Contra - Reforma da do litoral marroquino; os
Igreja. ingleses começam a inter-
«O Mundo está a ferir regularmente nos
mudar, por alturas de mercados da África Oci-
1521»(5). A frase é de dental; a “Rota do Levan-
Vitorino Magalhães Godi- te” reanima-se concorren-
nho. Neste ano, o primeiro do de forma desafiadora
do seu governo, D. João III com a acidentada e de-
depara-se não só com a morada “Rota do Cabo”;
emergência de uma nova mercadores turcos e
realidade política europeia venezianos instalam-se
(que já vinha tomando em Bassorá, Ormuz e no
corpo e forma nos últimos Malabar, ameaçando o
anos do reinado de seu comércio português no
pai), como também pro- Índico; a coroa portuguesa
fundas mudanças que fecha a sua feitoria de
ameaçavam abalar as Antuérpia, sinal bem claro
estruturas sócio-económi- das dificuldades finan-
cas vigentes. As dificul- ceiras e da diminuição do
dades espreitavam. Fontes A Terra protegida por Júpiter e Juno (D. João III e D. Catarina) - G. Wezeler fluxo de tráfico marítimo
da época deixaram regista- - Real Monasterio del Escorial. dos produtos ultramarinos.
do que foi«o ano de 1521 Os novos tempos obri-
rico e próspero de festas [...], mas tão pobre Império. Por exemplo, entre 1520/1 – 1525/6 garam D. João III a levar por diante uma
e estéril dos fruitos da terra, não só em a escassez da prata alemã e o esgotamento política de reformas profundas, a repensar
Portugal mas por toda a Espanha e até em do ouro da Costa da Mina - base monetária seriamente toda a organização administrativa
África, que deu manifesto e triste agouro da para a compra de pimenta e outros produtos do Estado, e a controlar os custos despendi-
infelicidade em que havia de acabar.» (6) no Oriente - condiciona a circulação de mer- dos na manutenção de um Império que não
Com base nos estudos de Vitorino cadorias. Durante estes anos, o Império parava de crescer. Tão amplo domínio terri-
Magalhães Godinho é possível inferir os Português começa a sofrer a concorrência de torial e marítimo implicava o desvio, imedia-
períodos de depressão vividos durante a go- dois novos espaços políticos: no Mediter- to, dos lucros provenientes da venda das
vernação de D. João III(1521-1557). râneo Oriental o Império Turco conquista a especiarias para as despesas crescentes em
Síria e o Egipto, ficando com uma porta aber- navios, homens, armas, fortalezas e produtos
ta para o Índico, através do Mar Vermelho, manufacturados que o país não produzia. A
Período enquanto intervém no Magrebe; por sua vez, balança comercial já muito deficitária depa-
Duração (anos) Carlos V reúne numa única armação política: rava-se, cumulativamente, com o engrande-
os principados, as cidades e os bispados cimento oneroso do Estado.
1520/1 – 1525/6 5 alemãs, a Flandres, o Franco-Condado, as Regulando-se na base dos regimentos, das
Duas Sicílias, o ducado de Milão, a Espanha cartas, alvarás e outros diplomas, a máquina
1530/2 – 1534/6 5 e as Índias do Novo Mundo. administrativa e burocrática conheceu, por
Estes novos actores no palco internacional, esta altura, uma reformulação legislativa
1545/7 – 1551/3 7 não deixam de ser dois concorrentes de peso apreciável.
para as ambições portuguesas, nomeada- - 1521 Ordenações do reino
Total 17 mente, a nova Espanha imperial de Carlos V - 1527/32 1º Numeramento da população
desequilibra nitidamente a seu favor todo o do reino
Fonte: Vitorino Magalhães Godinho, Ensaios, Vol. II, quadro geo-estratégico peninsular e até - 1532 Mesa de Consciência e Ordens,
pág.180 europeu. reformas administrativas, civis e eclesiásticas
Não pode passar desapercebido, do - 1533 Alvará para nova impressão das
Às fases depressivas sucedem em alternân- mesmo, o indesfarçável mal estar religioso, Ordenações
cia curvas ascendentes, que no seu conjunto que se vive um pouco por toda a Europa, - 1534 Redefinição de funções: Chanceler-
REVISTA DA ARMADA • SETEMBRO/OUTUBRO 2002 17