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Damião de Góis
                                       Damião de Góis

                  Cronista, Filósofo e Humanista
                  Cronista, Filósofo e Humanista




         INTRODUÇÃO                         humana adquirida durante as suas viagens  Na Europa deste tempo, notabilizaram-
                                            e desembocando na atitude crítica de livre-  -se, nesta linha de pensamento, homens
           Completaram-se no passado mês de  -pensador, independente de hierarquias e  como Erasmo de Roterdão, Tomás More,
         Fevereiro cinco séculos sobre o nascimento  grupos de pressão, que tantos dissabores  Montaigne e Rabelais. Embora com menor
         daquele que foi, sem dúvida, o máximo ex-  lhe viria a causar no fim da sua vida.  projecção mundial (e referimo-nos apenas à
         poente do Humanismo em Portugal -    Mas quais foram as causas de tamanha  actualidade), o “nosso” Damião de Góis é
         Damião de Góis. Não bas-                                                           digno de ombrear na His-
         ta, de facto, atribuir-lhe as                                                      tória com qualquer deles.
         tão frequentemente uti-
         lizadas designações de cro-                                                        O VIAJANTE
         nista e de filósofo, pois só o
         título de humanista é sufi-                                                          Nascido em Alenquer,
         cientemente abrangente                                                             em Fevereiro de 1502, de
         para definir aquele grande                                                         uma família nobre (1),
         homem do Renascimento.                                                             Damião de Góis entrou
           Para lhe fazer, então, a                                                         para o serviço do Paço em
         devida justiça, comece-                                                            1511, primeiro como pa-
         mos, em primeiro lugar,                                                            gem e, depois, em 1518,
         por definir a extensão do                                                          como moço de câmara de
         termo “humanista”.                                                                 D. Manuel I.
           O Humanismo come-                                                                  Companheiro de brin-
         çou, antes de mais, por                                                            cadeiras do futuro rei
         designar uma das princi-                                                           D. João III, viria a ser
         pais correntes estéticas                                                           nomeado por este, dois
         associadas ao Renasci-                                                             anos após a sua subida
         mento: a recuperação e o                                                           ao trono (que se verifi-
         culto das formas artísticas                                                        cou em 1521), escrivão
         - plásticas e literárias - da                                                      da feitoria portuguesa
         Antiguidade Clássica,                                                              de Antuérpia  (toman-
         centradas na figura hu-                                                            do, também, em aten-
         mana e desenvolvidas à                                                             ção, a sua ascendência
         sua dimensão. Acabou,                                                              flamenga – ver nota 1).
         porém, por extravasar o                                                            Na Flandres teve, en-
         domínio da estética e                                                              tão, ensejo de aperfei-
         englobar conceitos éticos,                                                         çoar a sua cultura hu-
         transformando-se em                                                                manística, dedicando-
         toda uma filosofia que                                                             -se às colecções de pin-
         colocava o Homem no                                                                tura, à música (era um
         centro das suas preocu-                                                            cantor talentoso) e, de
         pações e pugnava pelo                                                              um modo geral, às
         desenvolvimento de todas                                                           chamadas actividades
         as suas potencialidades,                                                           eruditas.
         tornando-o senhor do seu                                                             Em 1529 iniciou uma
         destino e fazendo-o triun-                                                         série de viagens, umas de
         far sobre a visão escolásti-                                                       carácter oficial, outras a
         co-eclesiástica da Idade                                                           título particular, que o
         Média. Aquele abandona,                                                            iriam levar a percorrer a
         assim, a imagem de frágil                                                          Europa e a contactar com
         e imperfeita criatura do                                                           algumas das mais ilustres
         obscuro teocentrismo medieval para passar  revolução no Pensamento Ocidental? Entre  figuras do seu tempo: primeiro à Polónia,
         a ocupar um lugar de destaque no centro  várias, contam-se a fuga para Ocidente dos  depois à Dinamarca (1531) e de novo à
         da Criação. O novo Homem deixa, então,  sábios gregos de Constantinopla após a sua  Polónia, tendo, nesta última, feito um desvio
         de estar sob a influência da palavra  queda nas mãos dos Turcos; a invenção da  por Vitemberga, onde conheceu Lutero e
         autoritária dos Mestres e passa a buscar, ele  imprensa, que permitiu uma “democratiza-  Melanchton; de regresso à Flandres, frequen-
         mesmo, as fontes do Conhecimento, viajan-  ção” (com a consequente discussão) do  tou a universidade de Lovaina, visitando, no
         do, dialogando e, acima de tudo, procuran-  Saber e, não menos importante, o início das  ano seguinte, Paris e Friburgo. Nesta cidade
         do aquele famoso “saber de experiências  grandes viagens marítimas dos Por-  estabeleceu contacto com Erasmo de
         feito”, que Camões tanto prezou. Foi justa-  tugueses, a “enterrar” os monstros do  Roterdão, então já uma figura de renome do
         mente esta a postura adoptada por Damião  Passado e a abrir novos horizontes para a  pensamento liberal e malquisto com a hierar-
         de Góis, começando na farta experiência  Humanidade.                  quia da Igreja, a quem criticava abertamente
                                                                                     REVISTA DA ARMADA • NOVEMBRO 2002  7
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