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A MARINHA DE D. MANUEL (30)
O 1º Vice-Rei
O 1º Vice-Rei
m 1505 era evidente para o poder porque ele é omnipresente e está na origem normal – nunca foi encontrado nenhum do-
político de Lisboa que a empresa da dos jogos de intriga junto do rei. Se alguém, cumento de chancelaria que a confirme, e
EÍndia era rentável, mesmo quando as por despeito ou vingança chegasse a Lisboa apenas temos referências a este facto por
circunstâncias incontroláveis determinavam e acusasse o Vice-Rei ou o Governador da descrições de alguns cronistas. Todavia –
perdas anormais, como acontecera com a Índia de exercer um poder que visava os seguindo as mesmas fontes – este fidalgo
viagem de Pedro Álvares Cabral, em 1500. seus próprios interesses, mais que os de el- adoeceu subitamente de um mal que o fez
Citando a recém apresentada tese de -Rei, com facilidade seria ouvido. Mesmo perder a vista (veio a recuperá-la mais tarde),
mestrado de José Virgílio Pissarra, é pos- e o Rei fez recair a sua segunda escolha
sível quantificar o número de navios na figura de D. Francisco de Almeida.
perdidos em dezassete, ao que corres- A 27 de Fevereiro de 1505, foi assina-
pondiam umas centenas peças de arti- da e publicada a carta de poder, cujo ori-
lharia e cerca de quinhentos homens. ginal ainda pode ser visto na Torre do
São números pesados, mas não alar- Tombo. E é curioso (mais uma vez) que,
mantes para o sentir da época. Tanto apesar de todos os relatos posteriores –
mais que a empresa tinha o selo da nomeadamente dos cronistas – apontam
cruzada, e as perdas humanas eram vis- D. Francisco de Almeida como sendo o
tas como serviço de Deus. Todavia, a 1º Vice-Rei da Índia (uma designação
gestão do incessante movimento de que nem todos os representantes régios
navios que cruzavam o Cabo da Boa mereceram, sendo alguns designados
Esperança (nos dois sentidos), que apenas por Governadores), mas a carta de
procuravam dominar o movimento poder apenas o indica como Capitão-Mor
marítimo da costa oriental africana, do (e D. Manuel não o trata por Vice-Rei em
acesso ao Mar Vermelho e da Índia, exi- nenhuma das muitas cartas que lhe
giam alguma coordenação e reacções envia, nos anos que se seguem), embora
mais rápidas que as decisões tomadas lhe dê poderes que ultrapassavam em
em Lisboa. Entre um problema ocorrido muito os de quaisquer outros que tive-
na Índia, e a possibilidade de dar corpo a ram funções com essa designação.
uma ordem dada por D. Manuel, depois Ocuparia o cargo durante três anos (con-
de a saber em Lisboa o que se passara, forme estabelece o próprio documento) e
decorriam pelo menos dois anos, quan- actuaria de acordo com um Regimento
do tudo corria bem e sem outras delon- que lhe foi dado a 5 de Março do mesmo
gas provocadas por desastres, atrasos na ano. Este é, seguramente, um dos mais
monção, ou múltiplas outras circuns- importantes documentos da fase inicial
tâncias próprias do mar oceano, da guer- da expansão portuguesa no Oriente,
ra, do jogo de alianças, etc.. porque nele se observa e analisa a forma
Assim decidiu o Rei que seria útil ter como o Rei e os seus conselheiros viam a
um representante seu no Oriente, com situação politico-militar no Oceano
poderes delegados e objectivos genéri- Índico, apontando as medidas a tomar
cos definidos, com capacidade para por D. Francisco de Almeida. Merecerá –
acorrer com maior rapidez a todos os só por si – que venha a abordar com
problemas, e conduzir a política esta- atenção e pormenor.
belecida de forma mais eficaz. Deve A sua esquadra partiu a 25 de Março
dizer-se, no entanto, que esta solução D. Francisco de Almeida. desse ano, levando 14 naus e 6 caravelas,
não deve ter sido muito fácil de aceitar mas a 18 de Maio sairia nova armada,
por parte de D. Manuel. A Europa vivia um que não alcançasse os seus objectivos, acaba- comandada por Pêro de Anaia, com indi-
momento político caracterizado por uma va sempre por gerar desconfianças que, cações para se juntar à primeira por perto de
progressiva centralização de poderes na uma vez acumuladas, podiam levar ao Moçambique (o topónimo está ilegível no
figura régia, a organização do estado tendia descrédito por parte do rei e a medidas pre- documento), num local onde os navios
para uma estrutura vertical controlada em cipitadas ou injustas. Mas isto – é claro – era grossos deveriam ficar em segurança. Pêro
absoluto pelo soberano. De forma que a algo que não tinha solução, considerando os de Anaia tinha indicações para ir construir a
figura de um delegado régio, com poder de objectivos a levar a cabo no Oriente e, simul- fortaleza de Sofala, de que ficaria Capitão, e
decisão sobre questões de natureza política, taneamente, o zelo real na centralização do para tal deveria encontrar-se com Francisco
que implicavam uma enorme força militar e poder, que é próprio daquela época. de Almeida, que o acompanharia nessa mis-
uma capacidade económica apreciável, com Mesmo assim, D. Manuel aceitou enviar são, depois de passar para um navio mais
possibilidade de jogar os poderes locais, de um representante seu para a Índia, e crê-se pequeno. Porém – como veremos a seu
fazer e desfazer alianças, etc., era algo que que nomeou Tristão da Cunha para ocupar o tempo – os acontecimentos correriam de
não agradava a nenhum soberano europeu, cargo. Eu insisto nesta expressão de dúvida, outra forma.
e D. Manuel não era excepção. É bom ter- quanto a esta nomeação (e cito outra vez a
mos este factor sempre em conta, na análise tese de Virgílio Pissarra, ainda não publica- J. Semedo de Matos
dos acontecimentos que se vão seguir, da), porque – contrariamente ao que seria CFR FZ
10 NOVEMBRO 2002 • REVISTA DA ARMADA