Page 335 - Revista da Armada
P. 335

mente por intervenção régia (recorde-se que  sabores, criando condições para, quatro anos  de 1945 os restos mortais de Damião de Góis
         Damião de Góis gozava dos favores de  mais tarde, ser confrontado com a reacti-  e da sua mulher foram trasladados da igreja
         D. João III e que o seu prestígio internacio-  vação do seu processo no Santo Ofício.  de Nª Sra. da Várzea (8), em Alenquer, para
         nal tornaria bastante incómodo um processo  Damião tinha, já, uma idade avançada e  uma capela da igreja de S. Pedro, sita na
         daquela natureza), mas a simples denuncia  não gozava, desta vez, da protecção real.  mesma vila. Verificou-se, então, que, além
         terá sido o bastante para que a sua nomeação  Tinha, além disso, um novo denunciante:  das marcas provocadas pelas queimaduras, o
         para o cargo oferecido fosse cancelada.  Luís de Castro, o seu genro que, provavel-  crânio do cronista apresentava fracturas
           Tal não o impediu de se lançar na escrita  mente movido por interesses relativos à he-  arredondadas muito pouco naturais, o que
         da obra Urbis Lovaniensis Obsidio (1546), onde,  rança do sogro (ou para o impedir de prestar  veio levantar a hipótese da sua morte não ter
         respondendo a um pedido de Carlos V, fazia  testemunho numa questão de partilhas), o  sido acidental. Teria sido esta a única forma
         um relato minucioso do cerco de Lovaina.   acusou de afirmações contra o papado  de Simão Rodrigues conseguir os seus tene-
           Em 1548, assente a poeira levantada pela  (segundo as quais muitos papas teriam sido  brosos intentos?
         denúncia ao Santo Ofício, foi nomeado guar-  verdadeiros tiranos) e contra a Companhia
         da-mor do Arquivo da Torre do Tombo,  de Jesus (teria dito que a maior parte dos seus  Jorge Manuel Moreira Silva
         instalando-se, então, em Lisboa e passando a  membros não observava os votos de pobreza             1TEN
         levar uma vida de fausto e ostentação e apro-  preconizados pelo seu fundador, Inácio de
         veitaria para escrever, em 1554, a obra Urbis  Loiola). Lançado nos cárceres da Inquisição,  Notas
         Olisiponis Descriptio. É claro que tal estilo de  foi o cronista forçado a confessar e a ma-  (1) Teve como pais o almoxarife Rui Dias de Góis,
         vida veio despertar velhas invejas e rancores,  nifestar o seu arrependimento em relação às  valido do Duque de Aveiro, e Isabel de Limi, descen-
         não sendo, então, de surpreender que Simão  suas relações com grandes reformistas da Eu-  dente de Nicolau de Limi, fidalgo flamengo que se
                                                                               estabelecera em Portugal
         Rodrigues aproveitasse o ensejo para nova  ropa. Os interrogatórios, que obrigaram Da-  (2) Por “erasmismo” entendamos o “cristianismo
         denúncia. No entanto, mais uma vez, o caso  mião a grandes esforços de memória para  interior”, um espírito marcadamente tolerante, a va-
         foi arquivado (4).                 evocar factos ocorridos várias décadas antes e  lorização do espiritualismo face aos pesados rituais
                                                                               católicos e o retorno aos valores primitivos da fé
                                                                               cristã.
                                                                                 (3) Este foi, também, o ano da morte de Erasmo que,
                                                                               de acordo com uma duvidosa tradição, teria morrido,
                                                                               só e desamparado por todos,  nos braços do humanista
                                                                               português.
                                                                                 (4) Embora toda esta protecção seja natural em
                                                                               relação a alguém criado no Paço Real, não falta quem
                                                                               especule sobre a possibilidade de Damião ser filho bas-
                                                                               tardo do rei D. Manuel.
                                                                                 (5) Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel de Gloriosa
                                                                               Memória
                                                                                 (6) D. João II
                                                                                 (7) Segundo alguns autores, teria sido, antes, em sua
                                                                               casa
                                                                                 (8) Que, em 1901, substituíra a igreja medieval origi-
                                                                               nal, da qual hoje não restam traços.

                                                                               Bibliografia
                                                                                 CRUZ, Valdemar, “O Filho da Intolerância”,
                                                                               Expresso (Revista), edição 1520, 14 de Dezembro de
                                                                               2001
                                                                                 DÓRIA, A. Alvaro, Damião de Góis, Lisboa, Livraria
                                                                               Clássica Editora, 1944
                                                                                 DRIFT, Anouk Van Der, O Eramismo na Obra de
                                                                               Damião de Góis, Bruxelas, 2001
                                                                                 FARIA, Francisco Leite de, Estudos Bibliográficos
                                                                               Sobre Damião de Góis e a Sua Época, Lisboa, Secretaria de
                                                                               Estado da Cultura, 1977
         Rosto da 1ª edição da Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel  Rosto da 1ª edição da Descrição da Cidade de Lisboa  GÓIS, Damião de, Crónica do Felicíssimo Rei D.
                                                                               Manuel., Coimbra, Imprensa da Universidade 1566 -
           Corria o ano de 1558 quando o novo rei,  aos quais estava longe de atribuir a impor-  1955
                                                                                 GÓIS, Damião de, Crónica do Príncipe D. João, edição
         Cardeal D. Henrique, o encarregou de escre-  tância que os seus carcereiros lhe davam,  crítica e comentada por Graça Almeida Rodrigues,
         ver a crónica de seu pai, o rei D. Manuel (5).  causaram profundo abalo ao humanista.  Lisboa, Universidade Nova, 1977
         Esta obra, dividida em quatro partes (a  Acusado de “herege, luterano, pertinaz e  NEVES, Damião de Góis, escritor, humanista 1502-1574
         primeira referente a acontecimentos passa-  negativo”, seria, em 1572, condenado a cár-  (http://www.vidaslusofonas.pt/damiao_de_gois.htm)
                                                                                 TORRES, A., “ Damião de Góis e o Erasmismo.
         dos na Metrópole e as restantes referidas ao  cere penitencial perpétuo e à confiscação de  Âmbito Conceptual e Dados Vivenciais, O Humanismo
         Ultramar que, ainda hoje, são uma valiosa  bens.                      Português 1500 - 1600. Primeiro Simpósio Nacional 21 - 25
         fonte para o estudo da Expansão Portugue-  Transferido para o mosteiro da Batalha,  de Outubro de 1985, Lisboa, Publicações do II
         sa) e concluída em 1567 (no mesmo ano  acabaria por ser libertado, devido ao seu esta-  Centenário da Academia das Ciências de Lisboa, 1985,
         terminaria também a Crónica do Príncipe  do de grande enfermidade. Na noite de 30  pp. 80 - 87
                                                                                 TORRES, Amadeu, Damião de Góis e o Pensamento
         D. João (6)), acaba por ser uma compilação  para 31 de Janeiro de 1574, a caminho do  Renascentista: do Ciceronismo ao Ecletismo, Paris, F.
         de vários episódios passados no tempo do  mosteiro de Alcobaça, pernoitou num alber-  Callouste Gulbenkian, 1982
         monarca, onde o autor narra minuciosa-  gue (7) onde, após ter dispensado os criados  VENÂNCIO, Fernando, “Escrita a Quatro Mãos”,
         mente os factos e os enriquece com a sua  que o acompanhavam, se deixou ficar até  Expresso (Revista), edição 1520, 14 de Dezembro de
         própria experiência e aguçado sentido críti-  mais tarde junto à lareira. Aí o encontrariam,  2001
         co, sem jamais ceder à tentação de cair na  no dia seguinte, morto por efeito das
         pura exaltação patriótica. Exemplo disso é o  queimaduras que sofrera após, ao que tudo  Agradecimentos
                                                                                 À Sra. Dra. Anne Verbrugge, da Universidade
         modo severo como descreve as perseguições  indicava, ter desfalecido sobre o fogo.  Católica de Lovaina, pela disponibilização gratuita da
         aos judeus. Tal postura, como seria de espe-  Quase quatro séculos se passaram até nova  pintura (em versão digitalizada) do cerco da cidade
         rar, viria a trazer ao cronista grandes dis-  luz ser lançada sobre o caso: em 30 de Agosto  que acompanha este artigo.
                                                                                     REVISTA DA ARMADA • NOVEMBRO 2002  9
   330   331   332   333   334   335   336   337   338   339   340