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A MARINHA DE D. MANUEL (22)
A grande decisão:
A grande decisão:
Voltar à Índia em força
Voltar à Índia em força
atenção de D. Manuel pode pare- século XV-XVI, com todo o imaginário que
cer dividida entre desejos de move as suas decisões.
Aexpansão no Norte de África e o A 10 de Fevereiro de 1502, saíam de
sonho da Índia, mas é fácil de perceber Lisboa quinze navios, constituindo duas
que as duas componentes não têm o esquadras com missões específicas. A prin-
mesmo peso. O homem prudente, enraiza- cipal, constituída por dez navios, tinha uma
do nos tradicionais valores da sociedade missão semelhante à de Cabral: à partida,
europeia medieval, aconselhá-lo-ía a que vingar a destruição da feitoria de Calecut e
ficasse por perto das suas terras, que aqui a morte dos portugueses, depois negociar
desse caminho aos seus desejos expan- com os reis do Malabar que aceitassem a
sionistas e que aqui cumprisse com os amizade dos portugueses, nomeadamente
seus deveres de bom cristão. Assim seria com o de Cochim e de Cananor; contudo, a
D. Manuel um rei como muitos outros bordo ia madeira aparelhada para que em
houve, na nossa história e na história de Moçambique fosse construída uma cara-
outros países europeus e, diga-se em vela que aí ficaria, de forma a exercer
abono da verdade, era isso que lhe domínio ou controlo sobre o comércio de
recomendava o seu Conselho. A chegada Sofala. A segunda esquadra, constituída
da esquadra de Cabral, em Julho de 1501 por cinco navios, destinava-se a ficar na
revelava uma perda de mais de cinquenta Índia para garantir a segurança dos por-
por cento dos navios, o que não deixava tugueses e atacar o comércio de especiarias
de ser significativo, mesmo considerando que subia a costa do Malabar e que se desti-
que o valor da carga acabara por cobrir os nava ao Mar Vermelho. Na prática, esta
prejuízos materiais. A Armada de Vasco da Gama (1502) - Livro das Armadas. esquadra, cujo comando foi dado a Vicente
É muito difícil compreender o que terá Sodré, iria exercer a soberania do rei de
levado D. Manuel a insistir no caminho da impensável, mas ele imaginou que era pos- Portugal, da mesma forma como a exercia
Índia, uma quarta vez e, dessa vez, com sível. Dominar o comércio marítimo orien- na costa portuguesa ou como fazia o corso
uma força desmedida, jogando uma espé- tal ou, pelo menos, conseguir uma posição no Golfo das Éguas, nos mares de Ceuta e
cie de “tudo ou nada”. Alguns autores no Índico que concorresse com a rota nor- nas costas mediterrânicas do Norte de
vêem nesta persistência um sentido mes- mal das especiarias através do Médio África. Para além destas duas esquadras, a
siânico de quem crê ir eliminar o Islão e Oriente podia parecer fora do alcance de 1 de Abril sairiam mais cinco navios, sob o
retomar Jerusalém, numa manobra de um pequeno país situado na faixa ocidental comando de Estêvão da Gama, primo de
envolvimento estratégico – e considerando- da Península Ibérica, mas ele acreditou que Vasco da Gama, cuja missão aparente é a de
-se o monarca eleito para levar a cabo tal não era assim. Mesmo depois de ter a se reunirem aos que tinham saído em
tarefa, como o provavam os sucessivos experiência da primeira viagem de Vasco Fevereiro, reforçando o seu poder no
acontecimentos que o levaram ao trono, da Gama, com os desacertos com o Índico, e aumentando a capacidade de
sem que tal facto fosse previsível, na linha Samorim de Calecut, apesar da expedição carga da expedição. São navios que não
normal da sucessão dinástica parental. de Cabral ter resultado na perda brutal de puderam ser aparelhados a tempo de sair
Outros alimentam o sentido de mercador navios com agravados conflitos na Índia, em Fevereiro.
pragmático: enquanto houver especiarias ele pensou que deveria insistir. Que sonho O rei hesitou bastante quanto ao coman-
que possam ser compradas e vendidas com ou ambição o animaria?... É muito fácil do desta grande missão, mas acabou por
vantagens, haverá uma razão para ir à dizer hoje que estava tomado por uma entregá-la a Vasco da Gama que foi intitu-
Índia. Outros ainda apenas vêm a ideia de “grandeza de sentimentos”, daquelas que lado Almirante das Índias, durante uma
glória ou a fama que representa um só alguns iluminados alcançam e que a missa celebrada na sé de Lisboa. Das mãos
domínio oriental a tantas milhas de distân- História regista a letras douradas. É muito do rei, recebeu pois a espada e o estandar-
cia: D. Manuel não tardou a intitular-se fácil porque sabemos o que aconteceu aos te, bem como um anel que, no momento, o
senhor da conquista, navegação e comércio portugueses naquele século XVI, no soberano tirou do seu próprio dedo. É no-
da Etiópia, Arábia e Índia. Mas as razões Oriente. Mas a atitude tomada precedeu tório o domínio da sua família sobre esta
concretas são aquelas que estão na mente todas as glórias. Aliás, a possibilidade de esquadra: para além de Vicente Sodré e
de um soberano, no momento em que construir um império a tão longa distância Estêvão da Gama, podemos apontar, pelo
toma uma decisão. Na verdade o Conselho da sua sede de poder era algo de ver- menos, um outro tio, Brás Sodré, e seus
não lho recomendava, mas ele sonhou com dadeiramente inédito que não encontrava cunhados, Álvaro de Ataíde e Lopo
um potentado no Oriente e quis tentar. par na história europeia. Por isso, o simples Mendes de Vasconcelos.
Sustentar conflitos e guerras a uma distân- facto de querer encontrar uma razão para a
cia imensa da metrópole, com deslocamen- decisão de D. Manuel peca por ser redutora J. Semedo de Matos
to de homens e meios, seria uma coisa na análise do carácter de um príncipe do CFR FZ
REVISTA DA ARMADA • FEVEREIRO 2002 13