Page 83 - Revista da Armada
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tantes da imprensa. Com este horrível
desastre o Brazil perde mais filhos que
na batalha de Riachuelo.
O ministro da marinha, de bordo do
cruzador “Barroso”, presenceou a medo-
nha catástrophe”.
Todos os dias os jornais acrescentam
mais qualquer coisa, e o naufrágio do
“Aquidaban” foi manchete durante bas-
tante tempo, comovendo os portugueses
com a desventura das famílias enlutadas e
sem consolo. O Brasil representava para a
generalidade do povo português algo de
diferente de qualquer outra nação, distante
ou próxima - ali se falava a mesma língua,
para ali emigravam muitos portugueses,
ali todos tinham um familiar ou um
amigo, - de forma que aquele acidente
soou como se tivesse acontecido aqui
Os jornalistas Decio Lemos e Francisco Valente mortos a bordo do “Aquidaban” - imagens do jornal “O Século” mesmo ao pé, como se o navio tivesse
(Janeiro de 1906).
explodido logo ali a seguir a Cascais, um
N’esse momento ouviu-se um rumor estrela brilhava. Só o silêncio, a treva, só
abafado, em que parecia haver ao mes- a dolorosa espectativa e o indizível ter-
mo tempo um profundo arrastar de ror da catástrophe. O mar tinha a qui-
grandes massas pesadas, fortes trovões etude de um túmulo e a escuridão era
longínquos e desmoronamentos suces- como um negro manto da morte”. A
sivos de construções colossaes. pouco e pouco, com o passar dos dias,
- Que será isto? Exclamou o nosso com- sabe-se o número exacto de mortos –
panheiro, saltando para o tombadilho. eram 212 – e chegava a verdadeira noção
D’ahi gritou para a câmara do comando, do inferno vivido pelos homens do
em baixo: “Aquidaban” e do profundo drama que
- Venham, venham depressa... Que envolvia a Marinha Brasileira.
horror!...” Em Portugal as notícias vão-se sabendo
O “Aquidaban” estava envolto numa ao ritmo do telex, cada vez mais por-
bola de fogo que, em cerca de cinco mi- menorizados e mais horríveis. O país está
nutos, desapareceu nas águas do em choque. A 23 de Janeiro o governo por-
Atlântico, restando apenas “um ininter- tuguês recebe o primeiro telegrama oficial
rupto clamor de agonia, sem solução de de Petrópolis:
continuidade, mais de cem vozes “Hontem às dez horas e meia da
bradando por socorro, algumas lanci- noite, o cruzador “Aquidaban”, que
nantes de dores, outras supplicas, quasi tinha saído numa divisão conduzindo o
apagadas na extrema fraqueza, outras ministro da marinha, fez explosão no A amizade Portugal-Brasil vista por Afonso Lopes Vieira
claras, vibrantes, dos ilesos da explosão e paiol da pólvora, voando o navio. nas “Lagrimas Portuguesas.
que nadavam firmes, desembaraçados”. De todas as pessoas que se achavam a
Embarcações foram lançadas à água, mas bordo, só se salvou o médico. pouco para lá da linha do horizonte, e
salvaram pouca gente. “O silêncio caiu Já se encontraram mais de trezentos como se os náufragos viessem dar às nos-
pesadamente sobre o mar; só elle e a cadáveres. sas próprias praias. A intelectualidade, em
escuridão da noite sinistra se estendiam Morreram três almirantes, o filho do geral, olhava o Brasil como um filho da
em torno. No céu encoberto nem uma ministro da marinha e vários represen- pátria portuguesa, numa comunhão, de
língua, de raça, de ideias e de ideais.
Passado que fora o período de luto, após a
AS PÓLVORAS QUÍMICAS independência em 1822, a sociedade culta,
fervilhante de ideias e sonhos de moder-
As conhecidas pólvoras sem fumo são as pólvoras químicas nitroglicéricas e nitrocelulósicas que
começaram a aparecer ainda no século XIX, com enormes vantagens balísticas e inovando toda a arti- nidade, não guardava qualquer ressenti-
lharia. Estas pólvoras, uma vez iniciadas, tinham uma velocidade de expansão de gases, muito inferior à mento para com o Brasil. Para eles, o novo
antiga pólvora negra, mas conseguiam prolongar essa expansão por muito mais tempo, conseguindo um país apresentava-se como uma espécie de
mesmo efeito propulsor, sem esforçar tanto as que recebiam um choque muito inferior. Foi com elas que
se pode reduzir o volume dos canos e dar outra operacionalidade à artilharia. Estava nestas condições a matéria-prima sem defeitos, a massa fresca
cordite (assim designada por causa da sua forma de cordões, como se fosse esparguete) pronta a ser moldada nos padrões de uma
Tinham, no entanto um problema grave: o seu processo de envelhecimento começava imediata- “nova sociedade”. Por isso, não admira,
mente após a sua fabricação, podendo ser acelerado por variações de temperatura e por exposição à que os intelectuais tenham estado na
luz. Ora acontece que este envelhecimento consiste na libertação de iões NO e NO2 que, a partir de primeira linha das respostas ao apelo de
uma certa quantidade, vão tornar a pólvora extraordinariamente instável, levando a que possa auto
iniciar-se e explodir em ambiente confinado. De um modo geral, os primeiros tempos de utilização solidariedade com o Brasil magoado.
foram marcados pela tentativa de estabilizar o composto, evitando esta degradação pela libertação dos Em Portugal crescem, pois, as manifes-
iões de óxido de Azoto, mas os resultados foram parcos. Até à segunda década do século XX, foi tações de toda a ordem e, de imediato, se
muito difícil estabilizar a degradação da pólvora química e alguns acidentes aconteceram, como no formou uma Comissão de manifestações a
Aquidaban, em Janeiro de 1906, e com o navio francês Liberté, em 1911 com muito mais vítimas.
Contudo as tentativas de controlar este fenómeno desastroso, procurando retardar a degradação da prestar ao Brazil com a função de receber
pólvora utilizando produtos estabilizadores, nunca cessou e acabaram por se conseguir resultados todos os donativos, centralizar a organi-
apreciáveis, ao ponto de desde há muito, essas pólvoras serem manuseadas sem qualquer perigo. zação de eventos e tomar iniciativas
próprias relacionadas com o desastre. De
REVISTA DA ARMADA • MARÇO 2002 9