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A MARINHA DE D. JOÃO III (4)



             Os combates pelo Mediterrâneo
             Os combates pelo Mediterrâneo



         A                                  turcas para ocidente, apoiadas pelos gran-  o grande galeão S. João, cuja capacidade de
               importância que o Mediterrâneo sem-
               pre teve na História de Portugal é  des corsários berberescos, com especial rele-
                                                                               artilharia lhe valeu a alcunha de botafogo.
               algo que fica ofuscado pela grandeza  vo para os irmãos Barbarroxa cujo percurso  Facilmente entenderemos que não era uma
         das navegações no Atlântico e Indico, até aos  é interessante recordar. O mais velho deles  força despicienda, se tivermos em conta a
         confins da Ásia e às Molucas. É fácil esque-  – Aruj Barbarroxa – tinha já uma fama negra  dimensão do país e a dispersão de forças
         cer como os navios portugueses cruzavam  junto das esquadras e praias cristãs, quando  navais a que Portugal estava obrigado por
         igualmente o Estreito de                                                             via da dimensão do im-
         Gibraltar navegando ao                                                               pério ultramarino.
         longo da costa andaluza,                                                               Infelizmente, para as
         valenciana e catalã, esca-                                                           forças cristãs, o êxito da
         lando as ilhas baleares e                                                            expedição foi precário.
         demandando os portos                                                                 Na altura Barbarroxa
         italianos do norte e do                                                              fugiu mas, de uma for-
         sul. Mesmo no auge da                                                                ma surpreendente, an-
         expansão ultramarina,                                                                tes que a esquadra do
         quando a Lisboa che-                                                                 imperador chegasse a
         gavam as especiarias                                                                 terras europeias, atacou
         e outras mercadorias                                                                 a cidade de Mahon em
         orientais, a abertura ao                                                             Minorca. Um dos navios
         Mediterrâneo era funda-                                                              que ali estava fundeado
         mental sob vários pontos                                                             era uma caravela portu-
         de vista: primeiro, deve-                                                            guesa que, no combate
         mos considerar que de lá                                                             com três galés argelinas,
         vinham produtos essen-                                                               foi bombardeada e afun-
         ciais à sobrevivência do                                                             dada. A reconquista de
         reino (como era o trigo                                                              Tunes transformava-se
         de Valência ou da Sicí-                                                              numa vitória de Pirro
         lia); depois era esta uma   “Representação cartográfica do porto e cidade de Argel, onde é possível ver a ligação do ilhéu a terra firme e o   em face dos benefícios
         via de acesso ao centro   molhe protector, cuja construção foi levada a cabo por Barbarroxa”.  que o senhor de Argel
         comercial da Europa, onde os produtos ultra-  foi convidado pelo rei de Argel (1516) para  conseguira. Três anos depois (1538), uma
         marinos tinham de ser colocados para que a  que o ajudasse a expulsar os espanhóis de  imensa esquadra comandada por Andrea
         empresa fosse lucrativa; e, por último, era o  um pequeno rochedo que dominava es-  Dória, integrando espanhóis, venezianos,
         Mediterrâneo um dos pólos de uma rota ma-  trategicamente a cidade (Peñon de Argel),  genoveses, pontifícios, portugueses e da Or-
         rítima que passava em frente da costa portu-  controlando o seu acesso pelo mar. Entrou  dem de Malta, defronta-se com Khair Ed-Din
         guesa, e que está na base da identidade do  na cidade com os seus homens, e em pouco  em Preveza. A desproporção de forças era de
         povo português, uma identidade marítima  tempo tomou conta do poder, depois de ter  250 navios cristãos para 122 islâmicos, mas
         que vira costas ao interior peninsular e gera  assassinado o soberano. Teve, contudo, uma  o resultado não sorriu as forças europeias
         as solidariedades que fundamentam o dese-  carreira curta, porque em 1518 foi apanha-  que sofreram uma derrota humilhante. E em
         jo de independência. Por tudo isto não é cor-  do de surpresa por uma frota espanhola que  1541, quando o próprio Impe rador resolveu
         recto que esqueçamos o que se passava no  não lhe perdoou as ousadias anteriores. No  atacar Argel para pôr fim a esta saga, o re-
         Mediterrâneo, sendo necessário medir bem  entanto, no governo de Argel tinha ficado  sultado foi semelhante. Barbarroxa morreu
         a importância que teve na vida do país, a par  um seu irmão (Khair Ed-Din) que deu con-  poucos anos depois, mas em perfeito sosse-
         com a Carreira da Índia ou os combates do  tinuidade às acções de corso contra os euro-  go, deitado na sua cama.
         Oriente. Ao pensarmos nas decisões tomadas  peus e revelou uma particular astúcia polí-  Portugal participou em todas as tentativas
         no reinado de D. João III em relação ao Norte  tica. Começou por se fazer vassalo do sultão  de dominar este vendaval mediterrânico le-
         de África – nomeadamente no abandono de  turco e conseguiu a sua prote cção, com o for-  vado a cabo pelo poder marítimo de Argel.
         várias praças que estavam ocupadas pelos  necimento de navios e soldados. Em 1529 ex-  Como é fácil de ver, sempre que os seus na-
         portugueses – deve avaliar-se bem esta com-  pulsou, finalmente, os espanhóis do Peñon  vios tinham de cruzar as águas do mar inte-
         ponente, porque ela teve uma importância  de Argel, demolindo a fortaleza e construin-  rior, faziam-no com o credo na boca, mas co-
         fulcral na análise política do soberano.  do um imenso molhe que unia a ilha a terra,  locava-se ao país um outro problema: aquilo
           O factor mais determinante do domínio  e formava uma barreira protectora para os  que era uma frente marítima no Mediterrâ-
         naval no Mediterrâneo no princípio do sé-  navios que demandavam o porto (ver ima-  neo tinha uma correspondente terrestre nos
         culo XVI é, sem sombra de dúvida, o avan-  gem). Em 1533 foi nomeado Almirante-Mor  campos do Norte de África, onde crescia uma
         ço turco no tempo de Solimão o Magnífico. O  da esquadra turca e, de seguida, ocupou Tu-  força ameaçadora para as praças portuguesas.
         sultão chegou ao poder em 1520 e obtém, de  nes ficando com um domínio efectivo sobre  Esta era uma das fragilidades do sonho de
         imediato, uma vitória militar que consolida  toda a costa do Norte de África, até Tripoli.  D. Manuel, que viria a obrigar a decisões drás-
         as suas posições no Egipto, ocupa a Hun-  Carlos V reagiu organizando uma esquadra  ticas por parte de D. João III, mas esse assunto
         gria e avança pelo Mediterrâneo conquis-  que recuperou essa posição em 1535, e é co-  será tratado na próxima Revista da Armada.
         tando Rodes, onde estavam os cavaleiros de  nhecida a participação portuguesa na em-                  Z
         S. João do Hospital. Sobretudo esta vitória  presa, com um grupo de 23 navios coman-     J. Semedo de Matos
         sobre Rodes marca o avanço das esquadras  dados por António Saldanha. Um deles era                CFR FZ
                                                                                     REVISTA DA ARMADA U AGOSTO 2005  17
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