Page 307 - Revista da Armada
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A MARINHA DE D. JOÃO III (5)



               As praças do Norte de África
                As praças do Norte de África



         É                                                                     no Norte de África). Fico com a impressão de
             minha opinião que o principal valor da  acossada pela artilharia colocada num mor-
             cidade de Ceuta, no século XV, e uma  ro sobranceiro à vila; Safim e Azamor foram  que se tratava de um esforço insano, sem ne-
             das principais motivações da expedição  abandonadas, de seguida; e em 1549 seria a  nhuma coerência estratégica e sem sustenta-
         que a conquistou em 1415, residia no valor es-  vez de Alcácer Ceguer e Arzila. A presença  bilidade prática. O próprio Duque de Bragan-
         tratégico da praça, à entrada do Mediterrâneo.  portuguesa no Norte de África, reduzir-se-ia  ça (D. Jaime), em 1529, recomendou ao rei um
         Deve salientar-se, porém, que                                                     abandono progressivo, des-
         se o local teve uma importân-                                                     truindo as fortalezas para que
         cia estratégica notável, duran-                                                   não viessem a ser utilizadas
         te o século XV, ela cresceu de                                                    pelos mouros. É importante,
         forma significativa durante                                                       contudo, tentar perceber o cri-
         o século XVI. O domínio de                                                        tério que levou à escolha dos
         Argel sobre o litoral norte-                                                      locais de resistência. Entendo
         africano, a leste de Tunes, e o                                                   que Mazagão tinha atractivos
         considerável crescimento do                                                       próprios nas produções locais
         poder muçulmano no Medi-                                                          e no comércio possível (a que
         terrâneo ocidental, colocavam                                                     se somava o contrabando e
         o problema do controlo do es-                                                     a pilhagem que tinham um
         treito de Gibraltar na primeira                                                   enorme peso), cujos produtos
         linha dos interesses europeus.                                                    poderiam vir para Portugal
         Estou em crer que D. Manuel                                                       ou seguir directamente para
         enquadrou este domínio do                                                         a Guiné. Também se perce-
         Estreito num sonho mais glo-                                                      be que as praças de Tânger e
         bal de soberania sobre toda a                                                     Ceuta ficavam sobre o Estrei-
         vasta região ocidental de Mar-                                                    to, cuja protecção interessava
         rocos (a região a leste de Ceu-  A cidade de Mazagão – mapa da Casa da Ínsua.     a toda a Europa e, particu-
         ta era um direito de conquista                                                    larmente ao comércio entre
         para Castela, como já foi dito antes), mas, como  a Mazagão (no sul), Tânger e Ceuta (no Estrei-  o Mediterrâneo e o Norte da Europa. O que
         sabemos, o seu projecto arrefeceu um pouco  to), e, a breve trecho, cairia a dinastia Oatássida  D. João III não podia adivinhar era a impor-
         após o malogro da expedição a Mamora, em  de Fez, substituída pela dos Sádidas, de que  tância que viria a ter o controlo da costa oci-
         1515. O resultado prático de uma ocupação  fazia parte Mawlay Shaykh. Vinte e oito anos  dental, a sul do cabo Espartel, quando o cor-
         impetuosa – que tinha, eventualmente, objecti-  depois da morte de D. Manuel, desvanecia-se  so islâmico alcançou o Atlântico no princípio
         vos alargados, mas que nunca obedeceu a um  o seu sonho de ocupação de Marrocos e a pre-  do século XVII. Arzila era um porto péssimo,
         plano – foi esta presença dispersa e incoerente.  sença portuguesa estava cingida a três praças  mas outros haveriam que justificassem o es-
         Não se consegue entender que ligação haveria  resistentes que, mesmo assim, passariam por  forço. Talvez mais do que Mazagão.
         entre Ceuta e Santa Cruz do Cabo de Gué, por  contínuas dificuldades.
         exemplo, e fica a ideia de que cada praça era,   A compreensão nacional desta retirada in-  Arzilla, a guerreira,
         em si, um caso isolado. Quando muito, poderia  glória – decorrido que era pouco mais de um   Lá jaz na aflicção,
         ligar-se às que lhe estavam mais perto, por ra-  século de lutas e sacrifícios – não foi nada fácil   Que a rendeu aos mouros
         zões de segurança e apoio, mas nunca porque  para as gerações vindouras. D. Sebastião foi   Elrei dom João.
         se enquadrassem num projecto vasto e pro-  educado sob a égide desta nostálgica revol-  Tomar-te-há Deus contas,
         gramado de ocupação. Esta situação dificultou  ta que se prolonga por séculos e está bem   Rei fraco e prasmado,
         grandemente a continuidade do “sonho ma-  patente nos versos de Alexandre Herculano   De tão grande vilta,
         nuelino” prejudicado, aliás, por variadíssimos  (sec. XIX), aqui transcritos. Todavia, quando   De teu grão peccado.
         outros factores, sendo importante salientar as  hoje estudamos a História de Portugal, temos   Maldiz-te nos mares
         dificuldades logísticas (pessoal e material) ine-  obrigação de perceber sem paixões a decisão   Valente fronteiro,
         rentes à própria presença, e a conjuntura polí-  de D. João III (como a nostalgia de Hercu-  Que na sé de Ceuta
         tica do espaço marroquino.         lano). Como disse, cada praça do Norte de   Se armou cavalleiro;
           Não é difícil adivinhar como a presença na-  África era um local isolado sem nenhuma   Que dez aduares
         cional era vista pelas populações locais como  sustentabilidade no território circunvizinho.   Em Tanger queimou,
         uma dupla agressão: ocupantes do território,  A situação das guarnições e moradores era   E em muros d’Alcacer
         os portugueses eram ainda inimigos da fé islâ-  mais do que precária, tornando-se desespe-  Dez elches matou:
         mica. E, se é verdade que por momentos foi  rada em situações de assédio, mesmo que   Que era hoje d’Arzilla
         possível ter relações pacíficas, graças a uma  ligeiro. Vivia-se na dependência do que che-  Temido adaíl
         política de contenção guerreira, dum modo  gava pelo mar, da metrópole, da Madeira ou   E a quem tu mandaste
         geral a violência imperava, exaltando o senti-  das feitorias da Andaluzia, onde se comprava   Fugir como vil
         mento de “guerra santa” contra os cristãos. Foi  trigo. Para além desta situação humana insus-
         este sentimento que alimentou a pregação dos  tentável, é importante referir que a despesa   Alexandre Herculano,
                                                                                 “A Perda d’Arzilla” (trecho)
         marabutos do sul e a revolta dos xarifes contra  era, por si, superior à que se despendia, con-
         o sultão de Fez, acusado de pactuar com os in-  juntamente, com a Armada da Índia e com a             Z
         vasores. Sob o comando de Mawlay Muham-  Guiné (como nos revela Otília Fontoura, num     J. Semedo de Matos
         mad Shaykh, em 1541 caiu Agadir (Sta Cruz),  brilhante estudo sobre a presença portuguesa         CFR FZ
                                                                              REVISTA DA ARMADA U SETEMBRO/OUTUBRO 2005  17
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