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A MARINHA DE D. JOÃO III (5)
As praças do Norte de África
As praças do Norte de África
É no Norte de África). Fico com a impressão de
minha opinião que o principal valor da acossada pela artilharia colocada num mor-
cidade de Ceuta, no século XV, e uma ro sobranceiro à vila; Safim e Azamor foram que se tratava de um esforço insano, sem ne-
das principais motivações da expedição abandonadas, de seguida; e em 1549 seria a nhuma coerência estratégica e sem sustenta-
que a conquistou em 1415, residia no valor es- vez de Alcácer Ceguer e Arzila. A presença bilidade prática. O próprio Duque de Bragan-
tratégico da praça, à entrada do Mediterrâneo. portuguesa no Norte de África, reduzir-se-ia ça (D. Jaime), em 1529, recomendou ao rei um
Deve salientar-se, porém, que abandono progressivo, des-
se o local teve uma importân- truindo as fortalezas para que
cia estratégica notável, duran- não viessem a ser utilizadas
te o século XV, ela cresceu de pelos mouros. É importante,
forma significativa durante contudo, tentar perceber o cri-
o século XVI. O domínio de tério que levou à escolha dos
Argel sobre o litoral norte- locais de resistência. Entendo
africano, a leste de Tunes, e o que Mazagão tinha atractivos
considerável crescimento do próprios nas produções locais
poder muçulmano no Medi- e no comércio possível (a que
terrâneo ocidental, colocavam se somava o contrabando e
o problema do controlo do es- a pilhagem que tinham um
treito de Gibraltar na primeira enorme peso), cujos produtos
linha dos interesses europeus. poderiam vir para Portugal
Estou em crer que D. Manuel ou seguir directamente para
enquadrou este domínio do a Guiné. Também se perce-
Estreito num sonho mais glo- be que as praças de Tânger e
bal de soberania sobre toda a Ceuta ficavam sobre o Estrei-
vasta região ocidental de Mar- to, cuja protecção interessava
rocos (a região a leste de Ceu- A cidade de Mazagão – mapa da Casa da Ínsua. a toda a Europa e, particu-
ta era um direito de conquista larmente ao comércio entre
para Castela, como já foi dito antes), mas, como a Mazagão (no sul), Tânger e Ceuta (no Estrei- o Mediterrâneo e o Norte da Europa. O que
sabemos, o seu projecto arrefeceu um pouco to), e, a breve trecho, cairia a dinastia Oatássida D. João III não podia adivinhar era a impor-
após o malogro da expedição a Mamora, em de Fez, substituída pela dos Sádidas, de que tância que viria a ter o controlo da costa oci-
1515. O resultado prático de uma ocupação fazia parte Mawlay Shaykh. Vinte e oito anos dental, a sul do cabo Espartel, quando o cor-
impetuosa – que tinha, eventualmente, objecti- depois da morte de D. Manuel, desvanecia-se so islâmico alcançou o Atlântico no princípio
vos alargados, mas que nunca obedeceu a um o seu sonho de ocupação de Marrocos e a pre- do século XVII. Arzila era um porto péssimo,
plano – foi esta presença dispersa e incoerente. sença portuguesa estava cingida a três praças mas outros haveriam que justificassem o es-
Não se consegue entender que ligação haveria resistentes que, mesmo assim, passariam por forço. Talvez mais do que Mazagão.
entre Ceuta e Santa Cruz do Cabo de Gué, por contínuas dificuldades.
exemplo, e fica a ideia de que cada praça era, A compreensão nacional desta retirada in- Arzilla, a guerreira,
em si, um caso isolado. Quando muito, poderia glória – decorrido que era pouco mais de um Lá jaz na aflicção,
ligar-se às que lhe estavam mais perto, por ra- século de lutas e sacrifícios – não foi nada fácil Que a rendeu aos mouros
zões de segurança e apoio, mas nunca porque para as gerações vindouras. D. Sebastião foi Elrei dom João.
se enquadrassem num projecto vasto e pro- educado sob a égide desta nostálgica revol- Tomar-te-há Deus contas,
gramado de ocupação. Esta situação dificultou ta que se prolonga por séculos e está bem Rei fraco e prasmado,
grandemente a continuidade do “sonho ma- patente nos versos de Alexandre Herculano De tão grande vilta,
nuelino” prejudicado, aliás, por variadíssimos (sec. XIX), aqui transcritos. Todavia, quando De teu grão peccado.
outros factores, sendo importante salientar as hoje estudamos a História de Portugal, temos Maldiz-te nos mares
dificuldades logísticas (pessoal e material) ine- obrigação de perceber sem paixões a decisão Valente fronteiro,
rentes à própria presença, e a conjuntura polí- de D. João III (como a nostalgia de Hercu- Que na sé de Ceuta
tica do espaço marroquino. lano). Como disse, cada praça do Norte de Se armou cavalleiro;
Não é difícil adivinhar como a presença na- África era um local isolado sem nenhuma Que dez aduares
cional era vista pelas populações locais como sustentabilidade no território circunvizinho. Em Tanger queimou,
uma dupla agressão: ocupantes do território, A situação das guarnições e moradores era E em muros d’Alcacer
os portugueses eram ainda inimigos da fé islâ- mais do que precária, tornando-se desespe- Dez elches matou:
mica. E, se é verdade que por momentos foi rada em situações de assédio, mesmo que Que era hoje d’Arzilla
possível ter relações pacíficas, graças a uma ligeiro. Vivia-se na dependência do que che- Temido adaíl
política de contenção guerreira, dum modo gava pelo mar, da metrópole, da Madeira ou E a quem tu mandaste
geral a violência imperava, exaltando o senti- das feitorias da Andaluzia, onde se comprava Fugir como vil
mento de “guerra santa” contra os cristãos. Foi trigo. Para além desta situação humana insus-
este sentimento que alimentou a pregação dos tentável, é importante referir que a despesa Alexandre Herculano,
“A Perda d’Arzilla” (trecho)
marabutos do sul e a revolta dos xarifes contra era, por si, superior à que se despendia, con-
o sultão de Fez, acusado de pactuar com os in- juntamente, com a Armada da Índia e com a Z
vasores. Sob o comando de Mawlay Muham- Guiné (como nos revela Otília Fontoura, num J. Semedo de Matos
mad Shaykh, em 1541 caiu Agadir (Sta Cruz), brilhante estudo sobre a presença portuguesa CFR FZ
REVISTA DA ARMADA U SETEMBRO/OUTUBRO 2005 17