Page 277 - Revista da Armada
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cedência da Ordem perante os colonos. Isto peito: “Nunca se escreveu em Portugal mais esta disputa, pois, tendo vivido como um ver-
vale-lhe a privação de voz activa nos assuntos claro, mais próprio, mais natural, de maior dadeiro cidadão do Mundo, o Padre António
da Companhia. Recorre ao Superior-Geral, em fluência, de mais vivo ritmo que o da obra Vieira acaba, no fundo, por pertencer a toda a
Roma, que acaba por anular a decisão. Mas esta oratória do Padre Vieira”. O seu estilo incisivo Humanidade.
derradeira vitória chega, já, demasiado tarde e oratório, a sua escrita fluente, cativante, rica Na verdade, se enveredássemos pela dispu-
para ele: a 18 de Julho de 1697, o Padre António em imagens e forte argumentação explicam ta da posse de tão ilustre Personagem, também
Vieira deixara de se contar entre os vivos. bem o facto de ser o autor do Barroco portu- a Marinha teria o seu quinhão a reclamar, ou
Muito chorado no Brasil, na Metrópole e por não falássemos nós de um homem que, entre
toda a Europa, não faltou quem visse no céu si- travessias do oceano e périplos europeus, terá
nais de fogo anunciando a sua morte, sobretu- acumulado perto de quinhentos dias de em-
do entre os índios, para quem o Payassu sempre barque e mais de dez mil horas de navegação,
fora uma figura lendária. uma marca bastante respeitável para alguém
que não era marinheiro de profissão. E nunca
UM HOMEM PARA A POSTERIDADE o Mar deixou de estar presente na sua Obra,
em múltiplas referências que constituem não
Apenas dois dias depois da morte de Vieira, é só preciosos testemunhos das navegações da
publicada pelo seu confrade António Andreo ni época como também riquíssimas metáforas
a sua primeira biografia: “Compêndio da Vida dos perigos que espreitam em cada canto da
do Muito Exímio Padre António Vieira”. Da existência humana. Afinal, Vieira soube com-
sua vasta obra literária, que incluía duzentos preender, melhor do que a maior parte dos seus
sermões e mais de quinhentas cartas, além de contemporâneos, a natureza intrinsecamente
vários documentos de carácter político, diplo- marítima do português e o papel fundamental
mático, religioso e profético estavam, já, publi- do espaço oceânico no cumprimento do nosso
cados onze volumes dos seus “Sermões”, a que destino como nação.
se seguiriam mais quatro, a título póstumo. O Z
“Livro Anteprimeiro da História do Futuro” se- J. Moreira Silva
ria dado à estampa em 1718, enquanto os dois CTEN
volumes da sua “Defesa Perante o Tribunal do Notas
A independência de Portugal será oficialmente re-
1
Santo Ofício” só veriam a luz do dia em 1957. conhecida pelo Papa a 1 de Janeiro de 1669.
Na euforia da celebração da sua memória che- Retrato do Padre António Vieira. 2 Recusara a obrigação de casar para dar um her-
Autor desconhecido. Início do Séc. XVIII.
garam, mesmo, a surgir alguns textos apócrifos, deiro à Coroa.
Muge, Cadaval.
como a “Arte de Furtar”, que lhe chegou a ser Fontes e Bibliografia
atribuído, hipótese recentemente desmentida. guês mais publicado no estrangeiro. Não es- CIDADE, Hernâni, Padre António Vieira: a Obra e o
Pessoa chamou-lhe “o Imperador da Língua queçamos, aliás, que foi um orador e escritor Homem, Lisboa, Arcádia, 1979
Portuguesa” e António Sérgio disse a seu res- de prestígio mundial, ombreando com nomes COBRA, Rubem Queiroz, Vida, Época, Filosofia e
consagrados do seu tempo como Bossuet e Obras do Padre Vieira http://www.cobra.pages.nom.
Bourdaloue. A sua própria vida, que atraves- br/fmp-vieira.html
ESPARTEIRO, António Marques, Três Séculos no Mar
O Mar na Escrita sou quase todo o século XVII, foi um espelho (1640-1910) – Caravelas e Galeões, vol. 3, Lisboa, Ministé-
do Padre António Vieira da energia que irradia de toda a sua obra, ou rio da Marinha, Colecção Estudos, 1973-1987
“Afastando-se da terra, quando já nada não tivesse ele atravessado sete vezes o Atlân- FRANCO, José Eduardo, BAPTISTA, Maria Ma-
se logra avistar senão mar e céu de todos tico e percorrido grandes distâncias – muitas nuel, Padre António Vieira 1608-1697 - o Imperador da
Língua Portuguesa, Lisboa, ed. Correio da Manhã, Pres-
os lados, nessa vastíssima planície teremos delas a pé -, apesar de, supostamente, sofrer selivre SA, 2008
de lutar com cada um dos ventos em par- de tuberculose crónica. MENDES, Margarida Vieira, A Oratória Barroca de
ticular, ou com todos, batalhando entre si, Fica-nos, acima de tudo, a memória de uma Vieira, Lisboa, Editorial Caminho, 2ª edição, Setem-
sem muralha, a não ser a da tábua, com um personalidade forte e de um carácter apaixona- bro 2003
dedo de espessura, que defende a nau e os do, cujo pensamento foi, sem dúvida, demasia- NEVES, Orlando, Padre António Vieira, Escritor, Pre-
navegantes, raramente protegidos do peri- do avançado para o seu tempo (ou, pelo me- gador, 1608-1697, http://www.vidaslusofonas.pt/pa-
go e nunca seguros do medo. dre_antonio_vieira.htm
Temíveis são os furacões; temíveis as trom- nos, para a sociedade algo retrógrada em que OLIVEIRA, Manuel Alves de [1902] ; RÊGO, Ma-
bas; temíveis os tufões, os três mais temíveis se integrou, como atesta a rejeição das esclare- nuela [1952], “VIEIRA, António”, O Grande Livro dos
Portugueses: 4000 Personalidades em Texto e Imagem, tex-
flagelos do oceano, que, fazendo girar não cidas medidas de recuperação económica que to Manuel Alves de Oliveira, pesq. iconográfica Ma-
apenas as velas mas as próprias naus, as des- propôs). Havendo quem considere a ideia do nuela Rego, Lisboa, Círculo de Leitores, D.L., 1990,
pedaçam e afundam. E, às vezes, arrastando- Quinto Império a sua imagem de marca, che- pp. 510-511
-as num turbilhão, levam-nas consigo para as gando, por vezes a estabelecer um rebuscado RAU, Virgínia, O padre António Vieira e a Fragata Fortu-
alturas e, pegando-lhes fogo, queimam-nas. paralelismo entre a sua antevisão de uma au- na, Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos,
(…) toridade mundial e as organizações internacio- Separata da revista Stvdia, nº2, Julho de 1958
Essa planície [o mar] esconde grandes nais dos dias de hoje (como as Nações Unidas), SANTOS, N. Valdez dos, O Padre António Vieira e o
montanhas (…) que, ao sopro dos ventos, o que há de verdadeiramente visionário em Mar, separata, Academia de Marinha, 1998 e
SARAIVA, António José, “VIEIRA, P. António
emergem como que de uma cilada e, elevan- Vieira, mais do que os seus inspirados deva- (1608-1697)”, Dicionário de História de Portugal, coord.
do-se, ameaçam as naus; caindo, esmagam- Joel Serrão, vol. IV, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1964,
-nas; abrindo-se, engolem-nas; e apenas neios futuristas, é o seu conceito de tolerância pp. 298-302
num só féretro, ao mesmo tempo, de repen- (como atesta o seu diálogo com judeus e cris- VIEIRA, António, Cartas, coord. e anot. J. Lúcio Aze-
te, são sepultados todos os passageiros. tãos-novos) e a defesa do que hoje designamos vedo, 3 vols., Lisboa, Imp. Nacional, 1970-71
São estes os perigos de um e outro per- por Direitos Humanos (amplamente demons- VIEIRA, António, ESPÍRITO SANTO, Arnaldo (trad.,
curso com que devem arrostar, são estas as trada nas suas acções de protecção dos índios notas e glossário), Clavis Prophetarum, A Chave dos Profe-
dificuldades que devem vencer os ministros e dos escravos em geral). tas, ed. crítica, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1ª ed., 2000
VIEIRA, António, Sermões, Lisboa, Círculo de Lei-
do Evangelho se, para pregarem à maneira Não é, assim, de admirar que os nossos ir- tores, 1979
de hoje, se confiarem e devotarem aos peri- mãos brasileiros o reivindiquem como seu,
gos, da terra e do mar.” legitimados no amor que sempre mostrou nu- Agradecimentos
Ao Sr. Almirante Roque Martins, pelo atento acom-
Padre António Vieira, Clavis Prophetarum trir pelo Brasil e pelos seus nativos. Mas é pro- panhamento e incansável apoio à elaboração deste
vável que o velho jesuíta considerasse ridícula trabalho.
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