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A MARINHA DE D. JOÃO III (38)



           Um fidalgo do Renascimento à frente dos destinos da Índia
           Um fidalgo do Renascimento à frente dos destinos da Índia

         A                                  veu antes da sua primeira viagem à Índia, em  carácter de D. João de Castro, colocando-o à
              figura de D. João de Castro merece um  guntas e respostas. Foram as obras que escre-
                                                                               lida base documental que permite avaliar o
              particular realce entre todas as persona-
              lidades que governaram a Índia, não só  1538, da qual resultou um extenso Roteiro de  margem da venalidade que caracterizou ou-
         pela forma como contrastou com alguns dos  Lisboa a Goa, um Roteiro de Goa a Diu e um Ro-  tros governadores, que é possível analisar a
         seus antecessores ou pelo sucesso no segundo  teiro do Mar Roxo, escrito na sequência da expe-  situação portuguesa na Índia, em meados do
         cerco de Diu, que lhe valeu a ascensão de go-  dição de Estêvão da Gama em 1541 (Marinha  século XVI, com uma objectividade acrescida.
         vernador a Vice-Rei da Índia. Teve uma carrei-  de D. João III (32)). E qualquer destes roteiros  Uma boa parte dos sucessos ou dificuldades
         ra militar plena de sucessos, que começaram  está acompanhado de observações, relatos de  não se explicam apenas com a força ou fraque-
         numa prolongada presença em Tânger, pela  experiências e explicações detalhadas que se  za de este ou daquele representante da coroa,
         campanha que levou Carlos V a Tunes, onde  situam num patamar de conhecimento muito  impondo-se por uma multiplicidade de facto-
         esteve com o infante D. Luís, e pelos sucessos  acima do que era comum entre os pilotos por-  res imponderáveis e incontornáveis.
         na Índia, durante a sua primeira viagem ao  tugueses da época, envolvendo o domínio de   A última grande missão do seu mandato foi
         Oriente e quando lá voltou como Governador.  conceitos que só integraram a formação dos  a expedição levada a cabo para tomar posse de
         Mas esta foi apenas uma fa-                                                       Aden, efectuada a pedido do
         ceta da sua vida: aquela que                                                      próprio soberano local, que
         mais se evidenciaria enquan-                                                      tinha conseguido sacudir a
         to fidalgo de uma corte de                                                        tutela turca e pedia auxílio
         dimensão cosmopolita, não                                                         aos portugueses para garan-
         fora a qualidade dos seus                                                         tir a sua sobrevivência. A ci-
         estudos patenteado nos tra-                                                       dade fazia parte do leque dos
         balhos que deixou escritos.                                                       mais importantes objectivos
         D. João de Castro pertenceu                                                       da coroa, desde os primeiros
         a uma tertúlia cultural pro-                                                      anos da presença no Índico,
         tegida por D. João III e pelo                                                     mas nunca fora possível to-
         Infante D. Luís, que integrou                                                     má-la. Vitorino Magalhães
         vários fidalgos da corte por-                                                      Godinho põe a hipótese de
         tuguesa. “Aprendeu as Mate-                                                       que os interesses económicos
         máticas com Pedro Nunes [...]                                                     de uma boa parte dos nacio-
         fazendo-se tão singular nesta                                                     nais estabelecidos na Índia,
         ciência, como se a houvera                                                        assentava em rendimentos
         de ensinar” é o que nos diz o                                                     de contrabando e concessões
         seu biógrafo Jacinto Freire de                                                    à margem do poder real, que
         Andrade. E deve entender-se                                                       só eram possíveis porque se
         esta afirmação de uma forma   Perfil panorâmico da ilha de Socotorá, constante no Roteiro do Mar Roxo, de D. João de Castro. Este   mantinham vias de comércio
         abrangente, compreendendo   tipo de perfis aparece pela primeira vez na cartografia europeia com os desenhos do Livro de Francisco   como a do Mar Vermelho.
         que os seus estudos engloba-  Rodrigues (1513-15), e destina-se a uma imediata identificação da costa a quando da aterragem. Têm   Esses interesses boicotaram
         ram todas as disciplinas que   uma extraordinária utilidade para os navegantes e ainda hoje se usam nos roteiros.  sempre a possibilidade de
         fascinaram o mundo intelec tual do Renasci-  Oficiais da Marinha depois da criação da Aca-  um estabelecimento em Aden, porque ele di-
         mento. Aprendeu latim, leu atentamente os  demia Real de Guardas Marinhas, no final do  minuiria o fluxo de mercadorias clandestinas
         clássicos, tomou conhecimento de todos os sa-  século XVIII. Na época, os seus textos não me-  para Suez e para o Mediterrâneo de que tira-
         beres tradicionais e desenvolveu os estudos de  receram a compreensão imediata dos pilotos,  vam bom proveito. A oportunidade agora ofe-
         Matemática, indispensáveis à nova visão cos-  e os conceitos não passaram de forma directa  recida era única, e foi reunida uma armada de
         mográfica transmitida pelas viagens oceânicas  para a literatura náutica portuguesa do século  vinte cinco navios de remo, comandados por
         de longo curso. E não o fez de forma leve ou  XVI, mas o reconhecimento científico do seu  D. Álvaro de Castro, que deveriam ocupar a
         diletante, como seria próprio de quem apenas  valor foi muito claro nos séculos XVII e XVIII.  cidade e ali formar uma capitania portugue-
         segue o padrão educativo de um elemento da  Aliás, a fama dos seus trabalhos ultrapassou as  sa. Competia ao capitão de Ormuz efectuar o
         nobreza, cujo futuro estaria sempre mais liga-  fronteiras nacionais, e é possível encontrá-los  reforço da primeira linha até à chegada desta
         do à sua estirpe do que ao seu saber. Se D. João  nas mais distintas bibliotecas europeias.  esquadra. Mas esse reforço foi insuficiente e o
         de Castro estudou com Pedro Nunes, como   Governou a Índia durante três anos e teve  empenho de quem o protagonizou foi pouco
         nos referem os documentos, a vastidão dos  “prova de fogo” logo no início do mandato,  ou nenhum, de forma que Aden foi retomada
         assuntos sobre que especulou e que discutiu  com a crise de Diu, que resultou num sucesso  pelos turcos antes da chegada de D. Álvaro. Os
         tem a dimensão da obra do maior matemáti-  de vertentes variadas: uma vitória militar di-  navios não passaram além dos ilhéus de Cana-
         co português de sempre. E fê-lo com a atenção  fícil e estrondosa, uma lição para o Guzerate  canim, na costa do Hadramaute, regressando
         expectante de um cientista, experimentando,  e para toda a Índia, uma áurea de dedicação  à Índia no final de Abril de 1548. Apesar dos
         desenvolvendo, comentando e escrevendo  e honestidade e um sentido de administra-  elogios que fez à acção do seu filho, D. João de
         para que os vindouros possam seguir os seus  ção política sensata e ponderada. Na gestão  Castro não deixou de sentir o desalento de não
         raciocínios e usufruir dos mesmos. A ele se de-  ingrata dos factos e circunstâncias, o Vice Rei  ter conseguido ocupar a boca do Mar Verme-
         vem um Tratado da Esfera, que constituía sem-  distinguiu-se claramente dos seus antecesso-  lho, e isso sente-se bem no discurso amargo
         pre a base para os estudos cosmográficos mais  res, e isso teve a ver com a sólida formação hu-  das suas últimas cartas.
         desenvolvidos, e uma Geografia, escritas com  manista que se repercutiu no seu valor como              Z
         uma preocupação didáctica muito expressiva,  chefe militar, como marinheiro, como político   J. Semedo de Matos
         apresentados no formado de diálogo de per-  e como homem. E é porque existe uma só-               CFR FZ

         14  SETEMBRO/OUTUBRO 2008 U REVISTA DA ARMADA
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