Page 130 - Revista da Armada
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Vogal do Conselho Superior das Colónias  Dantas: “Gago Coutinho foi o último herói, o  viagem foi feita com maior conforto, em con-
         desde 1926, regressa a Moçambique para tra-  nauta sobrevivente dos descobrimentos e na-  dições mais adequadas a um “turista”, como
         balhos geográficos em 1933. Prestes a deixar  vegações que o génio henriquino inspirou”.  ele próprio se passara, então, a designar.
         as lides ultramarinas, redige um artigo que é   Tendo, essencialmente, publicado artigos   Foi promovido por distinção ao posto de
         uma verdadeira mensagem de despedida, em  dispersos (mais de 400 títulos!), A Náutica dos  Almirante em 1958, na sequência de uma de-
                                                                                                        16
         que recorda as provações que passara, mas  Descobrimentos, obra em dois volumes pu-  liberação da Assembleia Nacional . A carta-
         também as exóticas e coloridas vivências, en-  blicada em 1951, que, sob a coordenação do  patente de promoção foi-lhe entregue pesso-
         quadradas por um ambiente da mais sã ca-  Comandante Moura Braz, compila e orde-  almente pelo Ministro da Marinha, Almirante
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         maradagem . Passa à Reserva, como Vice-  na sequencialmente um significativo núcleo  Américo Tomás (que acabara de ser eleito Pre-
         Almirante, no ano seguinte.        dos seus estudos sobre o tema, é o seu grande  sidente da República), aquando do seu regres-
           Em 1936 é nomeado para a Comissão  contributo para a história da Náutica. Os seus  so do Brasil, a 24 de Junho daquele ano. Para o
         Orientadora da Exposição Histórica da Ocu-  trabalhos foram repartidos na colaboração em  efeito, o governante embarcou no “Vera Cruz”
         pação e do primeiro Congresso da Expansão  várias revistas, como os Anais do Clube Militar  em Cascais, quando o paquete, que trazia o
         Portuguesa no Mundo. Três anos antes fizera  Naval, Boletim da Sociedade de Geografia, Seara  distinto Sábio, pairava para receber piloto. No
         parte da comissão encarregada de proceder  Nova, e em vários jornais portugueses e bra-  cais da Rocha Conde de Óbidos aguardava-
         ao estudo do projecto de um monumento ao  sileiros, tendo também efectuado várias con-  os o Chefe do Estado-Maior da Armada, Vice-
         Infante D. Henrique em Sagres.     ferências em Portugal e no Brasil.  Almirante Guerreiro de Brito, e um batalhão
           A sua experiência como nave-                                                 de Marinha com fanfarra.
         gador e geógrafo serviu-lhe para                                                Todas estas honrarias não afec-
         coligir um valioso conjunto de                                                 taram a sua simplicidade. Sempre
         trabalhos sobre a náutica do tem-                                              orgulhoso das suas origens humil-
         po dos Descobrimentos, do qual                                                 des, era uma pessoa muito estima-
         se salienta o estudo das viagens                                               da no bairro lisboeta da Madra-
         de Vasco da Gama e de Pedro Ál-                                                goa, onde viveu cerca de setenta
         vares Cabral. A grande conclusão                                               anos e pelo qual nutria grande ca-
         dos seus estudos, que incluíram                                                rinho, extensível, aliás, a toda a ci-
         observações feitas com réplicas                                                dade. Além do seu amor a Lisboa,
         de instrumentos náuticos da épo-                                               era também famosa a sua espiri-
         ca das Descobertas, foi a de que as                                            tuosidade, com respostas prontas
         rotas seguidas pelos descobrido-                                               e ditos adequados a todas as oca-
         res não foram obra do acaso, sen-                                              siões. Quando, certa vez, lhe per-
         do, antes, planeadas com base nos                                              guntaram como tinha conseguido
         seus conhecimentos empíricos,   Fragata “Almirante Gago Coutinho” 1967-1992.   atravessar África a pé, respondeu
         que lhes permitiam contornar, no                                               de imediato: “Como havia de ser?
         mar alto, as correntes e ventos con-                                           Com as botas rotas, para a água
         trários, como sucedia na célebre                                               sair mais à vontade, porque, para
         “Volta da Mina”, que Coutinho                                                  entrar, entrava sempre.”
         designava por “volta pelo largo”.                                               Gago Coutinho faleceu na sua
         Como as suas conjecturas entra-                                                amada Lisboa um dia depois de
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         vam em confronto com as teorias                                                completar noventa anos . Na
         defendidas por alguns historia-                                                sua vida aventurosa atravessara,
         dores, viu-se envolvido em vivas                                               incólume, três regimes políticos
         discussões, nomeadamente nas                                                   radicalmente opostos, sem que o
         que se relacionavam com a auto-                                                prestígio e o respeito que soube-
         ria das descobertas da América,                                                ra granjear fossem minimamen-
         do Brasil ou da Austrália. Uma                                                 te beliscados. Foi sepultado com
         das polémicas mais acesas e inte-                                              o seu uniforme de campo e na
         ressantes foi a que manteve com                                                sua campa, conforme seu desejo
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         Quirino da Fonseca a respeito do                                               expresso , foi colocada a singela
         aparelho e da manobra da carave-  Navio-hidrográfico “Almirante Gago Coutinho” 2000-.  inscrição:
         la portuguesa. Frontal e inflexível, afirmava:   Foi sócio efectivo da Academia das Ciências
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         “Gosto de controvérsias, de tudo o que possa  de Lisboa (desde 1928 ), vogal da Academia   Gago Coutinho
         esclarecer, pois sou muito comunicativo, como  de Ciências de Lisboa, sócio da Academia de   1869-1859 19
         todos os homens do mar. Gosto da discussão  História, sócio do Instituto Histórico e Geo-  Geógrafo
         que faz luz”.                      gráfico do Rio de Janeiro, sócio honorário da
           Naturalmente, os seus estudos assentavam  Sociedade de Geografia de Lisboa (da qual fa-  Se este epitáfio traduz bem a simplicidade e
         mais em conhecimentos de ordem prática do  zia parte desde 1902) e sócio da Sociedade de  a modéstia do Homem que recorda, muito par-
         que na consulta arquivística (a sua pesquisa  Geografia do Rio de Janeiro. Além das distin-  co se torna em descrever a dimensão e a ampli-
         limitava-se, basicamente, à leitura das fontes  ções atrás enunciadas era condecorado com  tude da sua Obra. E muito menos descreve o
         impressas). Debruçou-se, porém, sobre aspec-  a Ordem do Império Colonial, a Grã-Cruz da  seu carácter independente, a sua honestidade,
         tos até então algo descurados pelos historiado-  Ordem de Avis e a medalha comemorativa  o seu espírito democrático e o seu incansável
         res marítimos: necessidades de abastecimento  das campanhas do Exército português.  labor, sem falar na jovialidade de quem, já na
         de água e víveres e a envolvente meteo-ocea-  Reformado em 1944, passou a deslocar-se  sua nona década de vida, dizia que continuava
         nográfica, que impunham severas limitações  ao Brasil (que considerava uma segunda pá-  a ter “alma de Tenente” ou no brio do Oficial
         às rotas utilizadas pelos descobridores. Para  tria) com maior frequência, tendo chegado a  que mesmo no meio do sertão africano nunca
         testar as suas teorias chegou a navegar, à vela,  participar no voo inaugural Lisboa-Rio de Ja-  deixara de se sentir marinheiro, pois as suas
         do Rio de Janeiro para o Porto, na barca “Foz  neiro em DC-4, quando o Presidente da Repú-  diversas facetas, continuadas entre si, mais
         do Douro”. Nela percorreu cerca de 8 mil  blica Brasileira o convidou para assinalar o 33º  não foram do que diferentes manifestações
         milhas, entre 1943 e 1944. Como disse Júlio  aniversário do seu épico voo. Claro que esta  de uma só paixão.

         20  ABRIL 2009 U REVISTA DA ARMADA
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