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A MARINHA DE D. JOÃO III (42)



         A viagem atribulada do vice-rei Afonso de Noronha
          A viagem atribulada do vice-rei Afonso de Noronha

                 João III soube pela armada de  tiram tomar o caminho do sul antes de meados  História da Carreira da Índia está cheia de er-
                 Manuel de Mendonça, que lar-  de Maio. Um atraso fatal, que já não daria para  ros deste tipo, ocorridos, sobretudo, quando
         D.  gou da Índia em Janeiro de 1549,  alcançar Moçambique e seguir para a Índia du-  as condições meteorológicas não permitiam
         que D. João de Castro morrera pouco tempo  rante a chamada “monção grande”, que decor-  seguir as referências mais comuns ou dificul-
         depois de ter recebido as mercês que lhe man-  re de finais de Agosto a princípios de Outubro,  tavam a estima e o reconhecimento das conhe-
         dara, como recompensa da estrondosa vitória  antes que se declare a monção de Nordeste  cenças próprias da cada zona oceânica. Era um
         que obtivera em Diu. Foi uma notícia particu-  com ventos contrários a esta travessia. De for-  facto que podia acontecer, mas não deixava de
         larmente dolorosa para o rei que tinha uma  ma que o vice-rei, depois de passar o Cabo da  ser vexante e difícil de aceitar pelos responsá-
         consideração especial pelo sábio governador  Boa Esperança, decidiu seguir “por fora” da  veis da navegação. O piloto da “S. Pedro” não
         e ilustre fidalgo, que o acompanhara na corte  ilha de S. Lourenço (Madagascar), procuran-  o suportou: fechou-se no camarote “e em tres
         desde muito jovem, e que com ele partilhara  do chegar ao Malabar ainda nesse ano. Esta  dias morreu de nojo”, segundo nos conta o re-
         o entusiasmante convívio da tertúlia cultural  viagem podia fazer-se, e era recomendada a  lato deixado por Diogo do Couto.
         dominada pela figura de Pedro Nunes. Rapa-  quem passasse o cabo tardiamente, mas colo-  É já sabido (Marinha de D. João III (41))
         zes da mesma idade foram homens na                                        que D. Afonso de Noronha não viu
         mesma época, a enfrentar os estimulan-                                    com bons olhos a guerra que decor-
         tes desafios do saber renascentista, cul-                                  ria em torno de Cochim e deu ordens
         tivado num espaço cosmopolita como                                        para que Jorge Cabral a parasse ime-
         era a Lisboa do princípio do século XVI                                   diatamente, deixando apenas uma pe-
         e, muito particularmente, o paço real da                                  quena força de prevenção sobre a ilha
         Ribeira. O soberano sabia ainda que o                                     de Bardela, sob o comando de Manuel
         seu sucessor era Garcia de Sá, homem                                      de Sousa Sepúlveda. Esta decisão não
         de idade muito avançada, com grandes                                      agradou ao anterior governador, mas
         probabilidades de não ocupar o lugar                                      não teve outra alternativa senão obe-
         durante muito tempo, obrigando a que                                      decer e entregar imediatamente o seu
         novas sucessões levassem à repetição de                                   cargo. Assim procedeu, efectivamente,
         problemas antigos e a que o governo re-                                   mas o incidente arrefeceu as relações
         caísse numa terceira ou quarta escolha,                                   entre os dos fidalgos, que evitaram to-
         com prestígio limitado. Apressou-se as-                                   dos os contactos desnecessários e man-
         sim a nomear alguém que fosse para a                                      tiveram uma distância e frieza apenas
         Índia provido do ascendente de uma                                        quebrada pelos deveres institucionais.
         nomeação directa, com melhores condi-                                     O governador cessante deveria regres-
         ções de governo e (provavelmente) mais                                    sar a Lisboa na mesma nau S. Pedro,
         do seu agrado. Entendemos facilmente                                      mas antes teria de proceder a recolha
         este sentimento régio se nos lembrarmos                                   da pimenta necessária para carregar to-
         das regras das sucessões, da possibilida-                                 dos os navios. Não conseguiram sair de
         de de que no momento da sua abertura                                      Cochim antes de Fevereiro e a viagem
         algumas das pessoas já não estivessem                                     de regresso foi fortemente prejudicada
         presentes e, sobretudo, do facto concre-                                  por esse atraso.
         to de que o sistema se destinava a suprir                                   O Samorim de Calecut, sabendo da
         imprevistos vazios de poder, e não dei-                                   presença do novo vice-rei, de imedia-
         xava de ser uma solução de recurso im-                                    to lhe enviou uma embaixada a propor
         posta pelas circunstâncias de um poder                                    a paz, e o acordo firmou-se em pouco
         exercido à distância de muitos meses de   D. Afonso de Noronha, filho do Marquês de Vila Real e vice-rei da Índia   tempo, retirando as tropas que estavam
                                         – Livro de Lisuarte de Abreu.
         viagem e incerteza.                                                       sobre Bardela. Afonso de Noronha or-
           A sua escolha foi para D. Afonso de No-  cava problemas de navegação complicados, e  ganizou a esquadra do Malabar, dotada de
         ronha, filho do 2º Marquês de Vila Real e  exigia mais dos pilotos, obrigando-os a uma  vinte navios de remo, e fez sair outra com
         membro da mais alta nobreza portuguesa.  maior atenção e a um maior rigor na estima,  cinco unidades do mesmo tipo para o Mar
         Deu -lhe o título de vice-rei e fê-lo acompa-  para que não se perdessem no Oceano Índi-  Vermelho, de onde continuavam a chegar
         nhar de muitas outras figuras ilustres que  co. Nalguns casos aconteceu que imaginavam  notícias sobre nova ofensiva dos turcos. Fi-
         guarneceram uma armada de cinco naus,  estar perto do destino e acabavam por dar, de  nalmente, a 20 de Janeiro partiu para o nor-
         que embarcaram cerca de dois mil homens  novo, à costa africana, atrasando a viagem por  te, passando pelas fortalezas portuguesas de
         destinados às guarnições da Índia de Malaca  um ano, com a dificuldade acrescida de não  Chalé e Cananor e seguindo para Goa, onde
         e das Molucas. Curioso é salientar a presen-  terem reabastecido de água atempadamente.  o esperava uma faustosa recepção. Um dos
         ça de um galeão com o nome de “Biscainho”,  A nau “S. Pedro”, em que seguia D. Afonso  primeiros problemas a que teria de acorrer
         a sugerir que os navios da Índia podiam ter  de Noronha, não passou por esta dificuldade,  durante a sua governação seria, de facto, ao
         origens diversas, podendo ser construídos  mas quando avistou terras a oriente, estavam  Mar Vermelho, onde os sucessos da expe-
         e adquiridos fora do reino. Nomeadamente  em frente à ilha de Ceilão, apesar do piloto  dição enviada não seriam os mais famosos,
         nos prestigiados estaleiros cantábricos, como  “porfiar que era a costa da Índia”. Quem o al-  mas será assunto para tratar numa das pró-
         aconteceu muitas vezes.            vitrou de imediato foi João Rebelo de Lima, ex-  ximas revistas.
           A armada partiu de Belém em Abril de 1550,  periente piloto que conhecia bem aquelas para-          Z
         contudo as circunstâncias meteorológicas não  gens, e a confirmação do engano veio quando   J. Semedo de Matos
         favoreceram a sua saída da barra e não permi-  chegaram à fala com uma embarcação local. A        CFR FZ

         20  FEVEREIRO 2009 U REVISTA DA ARMADA
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