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A Grande Batalha de Diu
                 A Grande Batalha de Diu

                     O PODER NAVAL E O DOMÍNIO DO MAR NO SÉC. XVI

         O                                                                     Cochim, de forma a trazer para o reino uma
               espaço índico à beira do século XVI,  ao Arquipélago e ao Mar da China. Aconte-
               quando ali chegaram os navios de  ce – como digo – que nunca se sujeitaram a  quantidade apreciável de pimenta, mas isso
               Vasco da Gama, era um mundo de  uma estrutura unificada de poder, e nunca  ocorreu sem que estivesse organizada uma
         complementaridades étnicas, sociais e co-  lograram alcançar uma política comum que  defesa consistente, nem que fossem prepara-
         merciais ligadas por uma teia de vias marí-  lhes desse a força necessária para se oporem  das verdadeiras alternativas. Calecut lutava
         timas que, simultaneamente, as uniam e se-  a todo e qualquer inimigo. E, de certo modo,  desesperadamente pela sua sobrevivência e
         paravam. Ao ritmo rigoroso das monções,  actuaram com os portugueses como com  empenhou fortes cabedais na expulsão dos
         do Mar Vermelho saíam navios que se diri-  quaisquer outros concorrentes do grande  portugueses de Cochim e de todo o Malabar,
         giam à costa oriental africana, para comprar  espaço comercial do Índico, combatendo-os  sabendo-se como isso só não aconteceu gra-
         ouro e marfim, que pagavam com algodão  quando eles afrontaram os seus interesses di-  ças à acção decisiva de figuras como Duarte
         do Guzerate, e usavam depois para adqui-  rectos, mas procurando a sua aliança ou pro-  Pacheco Pereira, actuando em circunstân-
         rir as especiarias do Malabar, de Samatra ou  tecção noutras disputas e rivalidades.   cias tremendamente difíceis. E a guerra pro-
         Java, que em Malaca ou na China eram tro-  Foi graças a esta maneira de proceder dos  metia continuar e alargar-se, considerando
         cadas por sedas e porcelanas, com que vol-  pequenos potentados islamizados do Orien-  os graves prejuízos económicos que aquela
         tavam ao ocidente.                 te, que os navios de Vasco da Gama foram  presença acarretava ao Samorim. Desde a se-
           Olhando para o cha-                                                               gunda viagem de Vasco
         mado Mundo Índico – um                                                              da Gama, em 1502, que
         espaço que se estende da                                                            perdia sucessivas campa-
         África Oriental ao Mar                                                              nhas de pimenta, que se
         da China e aos confins da                                                            reflectiam na asfixia dos
         Indonésia a ctual – verifi-                                                          mercadores muçulmanos
         camos que é dominado               Arábia                                           e na carência significativa
         por dois potentados de    Mar Vermelho                        Diu                   dos fluxos que acediam
                                                                        Chaul
         grande desenvolvimen-                                          Dabul Índia          aos portos do Mar Ver-
         to civilizacional e produ-                                    Angediva              melho. Nestes primeiros
         tores de mercadorias de                                                             anos da presença portu-
         elevada procura, como              Aden                         Cananor             guesa na Índia, uma das
         são a Índia e a China.                                           Calecut            tradicionais cadeias de
                                                                           Cochim
                                                                           Coulão
         Entre os dois pólos circu-                                                          negócio tinha sido seria-
         lam as produções de cada                                                            mente abalada pela de-
         um, mas sem que as duas                                                             terminação lusa, afectan-
         potências se empenhem                                                               do pequenos e grandes
         verdadeiramente no seu                      Oceano Índico                           poderes cujos centros se
         comércio ou, pelo menos,                                                            estendiam desde o Mala-
         no seu transporte. Existe,                                                          bar ao Egipto e a Veneza,
         portanto, um outro espa-                                                            passando, naturalmente,
         ço do Mundo Índico reser-                                                           por uma miríade de in-
         vado aos verdadeiros mercadores, onde as  perseguidos em Moçambique e Mombaça,  termediários que faziam o transporte ma-
         comunidades islâmicas foram ganhando  mas foram acolhidos em Melinde, onde o rei  rítimo. E o sultanato Guzerate, localizado à
         uma influência crescente, mas sem unida-  lhes deu um piloto para fazerem a travessia  volta do Golfo de Cambaia – onde se impu-
         de política. Subsistem e relacionam-se com  até Índia. De igual forma, nos anos que se se-  nha a grande cidade de Diu – era um dos in-
         base na solidariedade inerente a uma cren-  guiram, foram atacados, sem piedade, pelo  directos prejudicados por esta perturbação,
         ça religiosa comum, cimentada pela língua  Samorim de Calecut, acicatado pelos comer-  não porque fornecesse pimenta ou outras es-
         árabe dos escritos sagrados, mas disputam-  ciantes islâmicos do reino, mas foram prote-  peciarias, mas porque os seus algodões eram
         -se e rivalizam como se disputavam nóma-  gidos e apoiados pelo Raja de Cochim, que  um dos elos da cadeia agora quebrada.
         das e sedentários no deserto.      neles viu a possibilidade de assumir um pro-  Digamos que eram estes os ingredientes
           Após o estabelecimento do califado Abás-  jecto próprio de comércio. Ou seja, se algu-  principais para que surgisse uma aliança
         sida em Bagdad, no século VIII, o mundo  mas das forças vivas da região se apercebe-  com o objectivo de expulsar os portugue-
         islâmico abriu as portas do Oceano Índico  ram que a sua chegada traria complicações  ses da Índia. E a única potência que poderia
         espalhando-se com a sua fé até aos confins  ao escoamento de produtos orientais para o  tomar a iniciativa de a organizar era, natu-
         da China Imperial, como uma mancha de  Mediterrâneo – que constituía uma das com-  ralmente, o sultanato egípcio, sustentado
         tinta pode alastrar sobre um tecido poroso:  ponentes importantes do comércio islâmico  na estrutura militar dos mamelucos. Apoiá-
         de forma pacífica, persistente e indelével. Tal  do Índico – outros houve que não viram nis-  lo-iam, no Índico, o Guzerate, Calecut e um
         como nos caminhos da Arábia, aprenderam  so problema nenhum, porque venderiam aos  ou outro reino que já tivesse sido afrontado
         a vaguear de porto em porto como o faziam  nacionais o que já vendiam a outros.  pelos navios portugueses, acreditando ser
         de oásis para oásis, entendendo o comércio   Portugal não se apercebeu de imediato de  possível destruir o seu poderio naval. E, si-
         como uma forma sublime de vida, e assu-  todas as nuances do comércio do Índico, no-  multaneamente, do lado do Mediterrâneo,
         mindo uma tarefa que era repudiada por  meadamente, naquilo que inicialmente mais  actuava de forma velada a Senhoria de Ve-
         alguns dos detentores dos principais meios  lhe interessava, que era o tráfico das especia-  neza, encobrindo as suas intenções oficiais,
         de produção locais. Foi assim que se estabe-  rias. Elas não obedeciam a uma só lógica e só  mas fornecendo uma parte do material e o
         leceram por todas as orlas marítimas, des-  com o passar dos anos seria possível desven-  conhecimento necessário para o fabrico de
         de o Mar Vermelho a Sofala, desde o Golfo  dar todos os seus mistérios. A partir de 1500  navios e canhões. Foi esta aliança que permi-
         Pérsico ao Cabo Comorim, a Ceilão, Malaca,  foi possível obter acordos comerciais com  tiu a expedição marítima, com a qual os na-
                                                                                      REVISTA DA ARMADA U MARÇO 2009  17
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