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cionais se defrontaram em Chaul, em Março mento das instruções específicas constantes em Coulão, onde deveria tentar fazer tam-
de 1508, e em Diu, a 3 de Fevereiro de 1509. no Regimento. Este sim é um documento fun- bém uma fortaleza.
Precisamente há quinhentos anos. damental, cuja análise de pormenor é indis- Não há nada neste Regimento que reco-
Sabemos por uma crónica dos últimos pensável para compreender o pensamento mende uma atenção especial aos prepara-
anos do sultanato mameluco do Cairo, es- do rei e dos seus conselheiros. tivos do sultão do Egipto – tanto mais que
crita por Ibn Iyâs, que os preparativos para Os navios saíram separados em duas ar- o corpo expedicionário está apenas em em-
enviar um expedição à Índia datam de 1505 madas, uma delas comandada por Pêro de brião – mas deve notar-se que a nova estru-
ou mesmo antes, tendo em conta que em 29 Anaya, com a missão de se estabelecer em tura determinou um considerável aumento
de Setembro desse ano, o Sultão passou re- Sofala, onde deveria construir uma fortaleza, do poder naval português na Índia, multi-
vista ao contingente e pagou quatro meses dispensando três velas para irem a Cochim plicando o número de navios e homens de
de salário aos soldados. Compunham-no, carregar pimenta e regressar com o resto da guerra, e criando um programa de patrulha
essencialmente, magrebinos, arqueiros afri- esquadra. Com o vice-rei iam 14 naus e seis dos mares que vigiava o Malabar, o Guzerate
canos e turcomanos, a que foram acrescenta- caravelas, que deveriam passar por Quíloa, e a entrada do Mar Vermelho. José Virgílio
dos pedreiros, carpinteiros e operadores de e submeter o seu rei à soberania nacional, re- Pissarra – que se tem dedicado ao estudo da
equipamento pesado, com o objectivo de que clamando-lhe o tributo necessário em ouro, situação naval portuguesa no Índico, neste
fosse construída uma muralha em Djedá, an- passando depois por Melinde e seguindo primeiro período – observa com perspicácia
tes de avançarem para o Oriente. para Angediva, onde deveria ser feita uma este aumento de forças, notando que ele não
D. Manuel sabia destes preparativos ape- fortaleza. Finalmente iriam a Cochim onde foi tido em conta pelo sultão, que fez preci-
nas com o pormenor possível, atendendo reforçariam a posição aí construí da no tem- pitar a sua força, contando apenas com o
às difíceis comunicações da época. Certo po de Francisco de Albuquerque, e carre- dispositivo existente antes da chegada de D.
é, porém, que conhecia as dificuldades do gando as naus destinadas à especiaria, que Francisco de Almeida. Salienta o mesmo au-
Sultão e o seu desespero, tor, que as capacidades
bem como a colaboração navais do Egipto ma-
dos técnicos venezianos. meluco não poderiam ir
As vias da espionagem muito além do que con-
cruzavam-se com as da seguiu projectar, nesta
traição e jogo duplo, de altura, mas faz notar a
forma que estas infor- forma leviana e desleixa-
mações acabavam por da como as galés do sul-
circular, embora sem- tão se precipitaram para
pre com acrescentos enfrentar uma força que
ou omissões inerentes dificilmente poderiam
à passagem por mui- derrotar. Parece óbvia a
tas bocas, muitas ima- falta de informação da
ginações e muitos inte- parte das forças do Egip-
resses. to, e o protelar do con-
fronto directo pelos anos
A NOMEAÇÃO DE de 1506 e 1507, com ex-
UM VICE-REI pedições de menor inte-
resse em Djedá e noutros
Certo é que, em 1505, locais do Mar Vermelho,
o rei decidiu criar na Ín- Barra de Chaul – D. João de Castro, Tábuas dos Roteiros da Índia. só trouxe vantagens aos
dia uma estrutura de portugueses, enfraque-
projecção do seu poder, nomeando um vice- partiriam no princípio de 1506 para Lisboa. cendo cada vez mais os mamelucos, retiran-
-rei e dotando-o de meios diversos para exer- Recomendava ainda que se tentasse fazer do confiança aos seus soldados e, sobretudo,
cer o cargo, de forma a defender e alargar a uma fortaleza à entrada do Mar Vermelho, aos aliados locais. Por outro lado, se D. Ma-
influência dos portugueses. Esta atitude tem “porquanto por aqui se cerrava, não poden- nuel não recomenda nada de especial quanto
sido interpretada como uma iniciativa estra- do mais passar nenhuma especiaria à terra à força expedicionária egípcia, é notório em
tégica directa, que tem em conta as circuns- do sultão”, ao mesmo tempo que deveriam múltipla documentação diplomática – quer
tâncias do relacionamento dos portugueses tomar-se medidas em relação a Cambaia para o Papa quer para outros soberanos eu-
com o Mundo Índico, mas sem considerar os (Guzerate), na medida em que os seus algo- ropeus – que tem em mente um plano para
preparativos em curso no Egipto. Este últi- dões tinham uma importância especial para afrontar ou aniquilar o sultanato, tendo em
mo factor, contudo, pode não ser despicien- o negócio do ouro de Sofala. Em relação a conta a ameaça que o próprio fizera em 1505
do, considerando que as informações circu- esta última região, contudo, não determina- ao Papa, de que vedaria o acesso aos luga-
lavam e a ameaça era real. va um comportamento específico, nem im- res sagrados de Jerusalém, caso persistisse a
Nesse mesmo ano foi nomeado Tristão da punha uma via de guerra, sugerindo que se presença portuguesa na Índia. Uma ameaça
Cunha, para o exercício do importante car- tentassem os acordos necessários para obter que o rei português desprezou, prosseguin-
go de representante da coroa, imediatamen- a mercadoria necessária ao comércio portu- do com o plano de acção para o Índico.
te substituído por D. Francisco de Almeida, guês. Resumindo as suas medidas, nos seus D. Francisco cumpriu todas as instruções
por razões de saúde do primeiro. Seria este, pontos mais importantes, teremos: erigir que diziam respeito ao controlo da costa
portanto, o primeiro vice-rei da Índia, rece- uma fortaleza em Sofala; submeter Quíloa; oriental africana, nomeadamente ao estabe-
bendo para o seu exercício uma Carta de Po- montar uma fortaleza em Angediva; obter lecimento de Sofala e sujeição de Quíloa, se-
der e um vastíssimo Regimento, com detalhes uma posição fortificada à entrada do Mar guindo para Angediva, onde começou a fazer
sobre a sua viagem e acção, mostrando-nos Vermelho; tentar um acordo com o sultão uma fortaleza que se revelaria inútil e difícil
com toda a clareza que a coroa tinha ideias do Guzerate e fazer a guerra aos navios não de manter, dadas as condições da ilha. Seguiu,
muito definidas sobre a forma de actuar. A autorizados que dali se aproximassem para depois para Cochim onde teve notícia que a
Carta concedia-lhe poderes para administrar negociar. Acrescia a recomendação de que feitoria portuguesa de Coulão tinha sido ata-
a fazenda e a justiça, fazer a guerra e a paz devia carregar as naus da especiaria para o cada, enviando, de imediato seu filho, D. Lou-
e tomar as medidas necessárias ao cumpri- reino, fazendo-o em Cochim e completando -o renço de Almeida, com uma parte da armada
18 MARÇO 2009 U REVISTA DA ARMADA