Page 92 - Revista da Armada
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cionais se defrontaram em Chaul, em Março  mento das instruções específicas constantes  em Coulão, onde deveria tentar fazer tam-
         de 1508, e em Diu, a 3 de Fevereiro de 1509.  no Regimento. Este sim é um documento fun-  bém uma fortaleza.
         Precisamente há quinhentos anos.   damental, cuja análise de pormenor é indis-  Não há nada neste Regimento que reco-
           Sabemos por uma crónica dos últimos  pensável para compreender o pensamento  mende uma atenção especial aos prepara-
         anos do sultanato mameluco do Cairo, es-  do rei e dos seus conselheiros.  tivos do sultão do Egipto – tanto mais que
         crita por Ibn Iyâs, que os preparativos para   Os navios saíram separados em duas ar-  o corpo expedicionário está apenas em em-
         enviar um expedição à Índia datam de 1505  madas, uma delas comandada por Pêro de  brião – mas deve notar-se que a nova estru-
         ou mesmo antes, tendo em conta que em 29  Anaya, com a missão de se estabelecer em  tura determinou um considerável aumento
         de Setembro desse ano, o Sultão passou re-  Sofala, onde deveria construir uma fortaleza,  do poder naval português na Índia, multi-
         vista ao contingente e pagou quatro meses  dispensando três velas para irem a Cochim  plicando o número de navios e homens de
         de salário aos soldados. Compunham-no,  carregar pimenta e regressar com o resto da  guerra, e criando um programa de patrulha
         essencialmente, magrebinos, arqueiros afri-  esquadra. Com o vice-rei iam 14 naus e seis  dos mares que vigiava o Malabar, o Guzerate
         canos e turcomanos, a que foram acrescenta-  caravelas, que deveriam passar por Quíloa,  e a entrada do Mar Vermelho. José Virgílio
         dos pedreiros, carpinteiros e operadores de  e submeter o seu rei à soberania nacional, re-  Pissarra – que se tem dedicado ao estudo da
         equipamento pesado, com o objectivo de que  clamando-lhe o tributo necessário em ouro,  situação naval portuguesa no Índico, neste
         fosse construída uma muralha em Djedá, an-  passando depois por Melinde e seguindo  primeiro período – observa com perspicácia
         tes de avançarem para o Oriente.   para Angediva, onde deveria ser feita uma  este aumento de forças, notando que ele não
           D. Manuel sabia destes preparativos ape-  fortaleza. Finalmente iriam a Cochim onde  foi tido em conta pelo sultão, que fez preci-
         nas com o pormenor possível, atendendo  reforçariam a posição aí construí da no tem-  pitar a sua força, contando apenas com o
         às difíceis comunicações da época. Certo  po de Francisco de Albuquerque, e carre-  dispositivo existente antes da chegada de D.
         é, porém, que conhecia as dificuldades do  gando as naus destinadas à especiaria, que  Francisco de Almeida. Salienta o mesmo au-
         Sultão e o seu desespero,                                                            tor, que as capacidades
         bem como a colaboração                                                               navais do Egipto ma-
         dos técnicos venezianos.                                                             meluco não poderiam ir
         As vias da espionagem                                                                muito além do que con-
         cruzavam-se com as da                                                                seguiu projectar, nesta
         traição e jogo duplo, de                                                             altura, mas faz notar a
         forma que estas infor-                                                               forma leviana e desleixa-
         mações acabavam por                                                                  da como as galés do sul-
         circular, embora sem-                                                                tão se precipitaram para
         pre com acrescentos                                                                  enfrentar uma força que
         ou omissões inerentes                                                                dificilmente poderiam
         à passagem por mui-                                                                  derrotar. Parece óbvia a
         tas bocas, muitas ima-                                                               falta de informação da
         ginações e muitos inte-                                                              parte das forças do Egip-
         resses.                                                                              to, e o protelar do con-
                                                                                              fronto directo pelos anos
         A NOMEAÇÃO DE                                                                        de 1506 e 1507, com ex-
         UM VICE-REI                                                                          pedições de menor inte-
                                                                                              resse em Djedá e noutros
           Certo é que, em 1505,                                                              locais do Mar Vermelho,
         o rei decidiu criar na Ín-  Barra de Chaul – D. João de Castro, Tábuas dos Roteiros da Índia.  só trouxe vantagens aos
         dia uma estrutura de                                                                 portugueses, enfraque-
         projecção do seu poder, nomeando um vice-  partiriam no princípio de 1506 para Lisboa.  cendo cada vez mais os mamelucos, retiran-
         -rei e dotando-o de meios diversos para exer-  Recomendava ainda que se tentasse fazer  do confiança aos seus soldados e, sobretudo,
         cer o cargo, de forma a defender e alargar a  uma fortaleza à entrada do Mar Vermelho,  aos aliados locais. Por outro lado, se D. Ma-
         influência dos portugueses. Esta atitude tem  “porquanto por aqui se cerrava, não poden-  nuel não recomenda nada de especial quanto
         sido interpretada como uma iniciativa estra-  do mais passar nenhuma especiaria à terra  à força expedicionária egípcia, é notório em
         tégica directa, que tem em conta as circuns-  do sultão”, ao mesmo tempo que deveriam  múltipla documentação diplomática – quer
         tâncias do relacionamento dos portugueses  tomar-se medidas em relação a Cambaia  para o Papa quer para outros soberanos eu-
         com o Mundo Índico, mas sem considerar os  (Guzerate), na medida em que os seus algo-  ropeus – que tem em mente um plano para
         preparativos em curso no Egipto. Este últi-  dões tinham uma importância especial para  afrontar ou aniquilar o sultanato, tendo em
         mo factor, contudo, pode não ser despicien-  o negócio do ouro de Sofala. Em relação a  conta a ameaça que o próprio fizera em 1505
         do, considerando que as informações circu-  esta última região, contudo, não determina-  ao Papa, de que vedaria o acesso aos luga-
         lavam e a ameaça era real.         va um comportamento específico, nem im-  res sagrados de Jerusalém, caso persistisse a
           Nesse mesmo ano foi nomeado Tristão da  punha uma via de guerra, sugerindo que se  presença portuguesa na Índia. Uma ameaça
         Cunha, para o exercício do importante car-  tentassem os acordos necessários para obter  que o rei português desprezou, prosseguin-
         go de representante da coroa, imediatamen-  a mercadoria necessária ao comércio portu-  do com o plano de acção para o Índico.
         te substituído por D. Francisco de Almeida,  guês. Resumindo as suas medidas, nos seus   D. Francisco cumpriu todas as instruções
         por razões de saúde do primeiro. Seria este,  pontos mais importantes, teremos: erigir  que diziam respeito ao controlo da costa
         portanto, o primeiro vice-rei da Índia, rece-  uma fortaleza em Sofala; submeter Quíloa;  oriental africana, nomeadamente ao estabe-
         bendo para o seu exercício uma Carta de Po-  montar uma fortaleza em Angediva; obter  lecimento de Sofala e sujeição de Quíloa, se-
         der e um vastíssimo Regimento, com detalhes  uma posição fortificada à entrada do Mar  guindo para Angediva, onde começou a fazer
         sobre a sua viagem e acção, mostrando-nos  Vermelho; tentar um acordo com o sultão  uma fortaleza que se revelaria inútil e difícil
         com toda a clareza que a coroa tinha ideias  do Guzerate e fazer a guerra aos navios não  de manter, dadas as condições da ilha. Seguiu,
         muito definidas sobre a forma de actuar. A  autorizados que dali se aproximassem para  depois para Cochim onde teve notícia que a
         Carta concedia-lhe poderes para administrar  negociar. Acrescia a recomendação de que  feitoria portuguesa de Coulão tinha sido ata-
         a fazenda e a justiça, fazer a guerra e a paz  devia carregar as naus da especiaria para o  cada, enviando, de imediato seu filho, D. Lou-
         e tomar as medidas necessárias ao cumpri-  reino, fazendo-o em Cochim e completando -o  renço de Almeida, com uma parte da armada
         18  MARÇO 2009 U REVISTA DA ARMADA
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