Page 94 - Revista da Armada
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consolidasse a tríplice aliança entre o Egipto  sabilidades, aos portugueses nada mais res-  salento que expressa numa sua carta escrita
         mameluco, o reino de Calecute e o sultanato  tava senão retirar-se. Conseguiram proteger  em 1508, mas essa mesma carta mostra tam-
         do Guzerate, representado pelo governador  a saída dos navios de carga e prepararam-  bém a sua compreensão do momento que se
         de Diu, Melik Ayaz. O corpo expedicionário  -se para largar, mas os mamelucos estavam  vivia na Índia, tão óbvio na célebre expres-
         egípcio, finalmente, decidia-se a sair do Mar  atentos. O navio de D. Lourenço foi o último  são: “quantas mais fortalezas tyverdes, mays
         Vermelho, Calecut dava a sua tímida cola-  a picar a amarra e a ousadia valer-lhe-ia um  fraco será cá vosso poder. Ao presente vossa
         boração (talvez fosse o único que não tinha  rombo que o pregou ao lodo, deixando-o à  força está cá no mar, e se nele não formos po-
         nada a perder), e Diu tinha as condições ne-  mercê da artilharia inimiga que o sepultou  derosos levemente se perderão vossas forta-
         cessárias para albergar a frota dos mamelu-  no leito do rio.         lezas”. Uma frase que despertou muita dis-
         cos, numa posição vantajosa em relação a   Evidentemente que a morte do capitão  cussão e suscitou interpretações erradas do
         toda a Índia, pronta a actuar como fosse ne-  da Armada da Índia significava uma vitó-  seu pensamento, não tendo em conta que
         cessário. Era essa, aliás, a grande vantagem  ria para os egípcios, independentemente dos  dissera antes: “Meu filho está morto, como a
         estratégica daquele local, como reconheceria,  danos que tinham sofrido e do facto dos res-  Nosso Senhor aprouve e Vossa Alteza sabe-
         anos mais tarde, Lopo de Sousa Couti-                                     rá. Mataram-no venezeanos e mouros
         nho, definindo-a como “fortissima, e                                       do Soltam [...] da qual cousa ficaram os
         n’ella haver bom porto e vasadouro, e                                     mouros destas partes bem favorecydos,
         ser a barlavento de toda a India” (His-                                   com esperança de grande socorro, e
         tória do cerco de Diu).                                                   parece-me que não podemos deixar de
           Apesar das circunstâncias favore-                                       nos este ano ver com eles de verdade,
         cerem uma moral elevada, por parte                                        que será a cousa que eu agora mais de-
         da coligação anti-lusitana, só os egíp-                                   sejo”. Algo que não pode ter outra leitu-
         cios estão convencidos de que a vitória                                   ra que não passe pela sua interpretação
         será uma coisa fácil. Todos os outros já                                  da situação militar do momento, consi-
         experimentaram a capacidade militar                                       derando que a esquadra mameluca está
         portuguesa, e perceberam que as tro-                                      em Diu, e a prioridade portuguesa só
         pas do sultão não têm destreza nem                                        pode ser a sua destruição.
         condições para os combates navais do                                        Não é possível fazer aqui um relato
         Índico. Melik Ayas tem uma noção cla-                                     circunstanciado da forma como decor-
         ra disso, perturbando-o ainda a postu-                                    reu essa batalha, preferindo alargar a
         ra destes aliados, que se comportavam                                     explicação das circunstâncias em que
         como conquistadores no seu território.                                    ela se tornou tão importante para as
         E será ele o elo mais fraco da aliança,                                   forças portuguesas na Índia, no século
         jogando com um pé de cada lado da                                         XVI. D. Francisco de Almeida concen-
         barricada para poder salvar os seus                                       trou as forças em Cochim a partir de
         domínios, aconteça o que acontecer.                                       Setembro, procedendo a todas as repa-
         Sobretudo, percebe que os mamelucos                                       rações necessárias e aprontando todos
         não podem ficar em Diu, sob pena de                                        os navios disponíveis. A 2 de Fevereiro
         tomarem conta dos seus próprios domí-                                     de 2009, chegou à vista de Diu, onde es-
         nios. Mas vai deixar correr os aconteci-                                  tava toda a armada inimiga que se pre-
         mentos enquanto não puder fazer outra                                     parou para lhe dar combate. Foi Melik
         coisa, pois isso lhe reclama a solidarie-                                 Ayaz que aconselhou a que se recolhes-
         dade islâmica e os interesses comerciais                                  sem no rio e combatessem ao abrigo da
         de Guzerate, do Egipto e de Calecut.                                      artilharia da fortaleza ou a derrota seria
           D. Lourenço de Almeida andava pelo                                      inevitável. O combate deu-se a 3 de Fe-
         norte, onde fora escoltar vinte navios                                    vereiro, com os navios a entrar pela bar-
         de Cochim que iam a Chaul carregar                                        ra quando começou a soprar a viração.
         mercadoria. Está desprevenido do pe-                                      Em pouco tempo, o inferno da artilha-
         rigo que o espreita, e quando o vice-rei                                  ria portuguesa se impôs aos inimigos,
         soube que os mamelucos estavam em                                         e os sobreviventes foram apenas o seu
         Diu, não valorizou suficientemente a                                       comandante, Hussein Mushrif (mame-
         ameaça, imaginando que a Armada da                                        luco curdo), que conseguiu fugir a ca-
                                          D. Francisco de Almeida – Quadro do Museu Nacional de Arte
         Índia seria suficientemente forte para   Antiga, retirado da Galeria dos Vice-Reis, em Goa.  valo com 22 homens.
         se desembaraçar de qualquer ataque.                                         Os mamelucos não desistiram de vol-
         Manda recado ao filho para que se mante-  tantes navios terem conseguido sair a barra  tar a combater os portugueses no Índico, mas
         nha de sobreaviso, mas recomenda-lhe que  sem danos de monta. O seu capitão pensava  nunca mais ousaram sair do Mar Vermelho.
         não procure o contacto com o inimigo, prote-  certamente isso, mas Melik Ayas sabia que  Em 1517, o sultanato soçobraria ao ataque
         gendo a carga dos navios, e evitando um de-  aquela força era uma ínfima parte da capa-  dos turcos otomanos, que retomariam o
         sastre como o que ocorrera em Dabul no ano  cidade naval portuguesa, e que a morte de  objectivo de expulsar os portugueses, mas
         anterior. A Armada está dentro da barra de  D. Lourenço não deixaria de merecer uma  os resultados seriam sempre os mesmos. A
         Chaul, e aí se manterá sendo completamente  resposta por parte do vice-rei seu pai.  derrota de Diu fora suficientemente devas-
         surpreendida pelo ataque dos egípcios, que a   Quando D. Francisco de Almeida recebe  tadora e não encorajava a que fosse repeti-
         forçaram a uma batalha em condições fran-  a notícia da morte do filho, sentiu como que  da a iniciativa de 1507. Foi o que a estratégia
         camente desfavoráveis, sem possibilidades  um golpe final sobre todas as ambições com  naval do século XX chamaria de batalha deci-
         de manobrar e sem poder tirar todo o ren-  que partira para a Índia, provido de cargo  siva, a partir da qual os portugueses garanti-
         dimento da artilharia. Dois dias de comba-  tão honroso. Sabia como as intrigas contra  ram o domínio naval do Oceano Índico por
         tes não tiveram um desfecho definitivo, com  ele tinham grassado na corte de Lisboa, e o  várias décadas.
         Melik Ayas a tentar manter-se à distância  tom das cartas que recebia do rei mostravam                Z
         para manter o jogo duplo. Mas quando teve  a forma negativa como a sua acção estava a    J. Semedo de Matos
         de entrar a barra e assumir as suas respon-  ser julgada pelo soberano. É conhecido o de-         CFR FZ

         20  MARÇO 2009 U REVISTA DA ARMADA
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