Page 93 - Revista da Armada
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que chegara de Lisboa, para castigar a afronta.  ção estava no fim e, aos navios portugueses,  co e com a perda de alguns navios, era algo
         É importante observar este acontecimento, na  não restava outra alternativa que invernar  que prejudicava a imagem dos portugueses
         medida em que revela os planos que o vice-rei  em Cochim ou nas barras protegidas que  na Índia. Assumia o ar de um recuo, apesar
         tinha para aquele jovem destemido e ambicio-  estivessem sob domínio português. Só em  de ocorrer depois da devastadora vitória de
         so, com pouca experiência enquanto capitão  Setembro voltariam as condições para an-  Cananor. Estas questões ganham uma certa
         do mar e sem a escola de combate do Norte  dar no mar, e nessa altura a prioridade era  importância psicológica e pesam na capaci-
         de África, mas cheio de vontade de triunfar  socorrer a precária fortaleza de Angediva,  dade de decisão dos inimigos, dando-lhes
         na Índia. Mandou-o a Coulão, como coman-  que fora cercada durante toda a monção de  vontade redobrada de combater e prejudi-
         dante da armada de desagravo da afronta  sudoeste e estava em apuros. D. Francisco  cando o domínio que Portugal pretendia ter
         feita à feitoria, mas embarcou-o na nau do  compreendera como era difícil manter aque-  sobre o Mundo Índico. A contagem dos facto-
         experiente João da Nova, e fê-lo acompanhar  la posição e, quando lá enviou  D. Lourenço,  res que determinavam o Poder Naval capaz
         dos veteranos capitães que com ele vieram  deu-lhe instruções para desactivar a posição,  de lograr este objectivo de D. Manuel tinha
         do reino, conhecedores do Oriente e dos seus  desmantelando todas as estruturas defen-  de fazer-se contando com todos estes porme-
         meandros. Naquele porto estavam 27 naus  sivas. Angediva revelara-se um erro estra-  nores: são os navios e a sua operacionalida-
         de Calecut, responsáveis pelo ataque às ins-  tégico que, apesar de corresponder a uma  de, são as capacidades para os substituir, são
         talações portuguesas (onde tinham morrido  posição importante, aparentemente, com  os pontos de apoio para os reparar e prote-
         queimados o feitor e cerca de 12 homens), que  controlo sobre a navegação entre o Malabar  ger, são os locais a partir de onde podem ser
         não imaginaram que os portugueses ousas-  e o norte, não tinha abrigo suficiente para os  lançados os ataques e é a moral e a vontade
         sem atacá-los, dada a superioridade que sen-  navios, nem meios próprios de subsistência  dos combatentes. Há sempre um conjunto de
         tiam ter. Enganaram-se, contudo, e perderam  em caso de cerco ou quando a estação fosse  circunstâncias, com componentes precários
         todos os navios. D. Lourenço tinha assim um  mais rigorosa.           e dependentes do comportamento dos pró-
         começo auspicioso de                                                                  prios homens. A retira-
         uma carreira em que                                                                   da de Angediva podia
         seu pai colocara todo                                                                 ser apenas um por-
         o seu empenho. Depois                                                                 menor negativo, sem
         desta acção, o vice-rei                                                               nenhuma importân-
         nomeou-o capitão da                                                                   cia e facilmente recu-
         Armada da Índia, e foi                                                                perável, mas o ano de
         nessa qualidade que                                                                   1507 teve mais acon-
         viria a ter a sua pri-                                                                tecimentos negativos
         meira grande batalha                                                                  e, alguns deles, quase
         naval, contra os navios                                                               apagaram a memória
         de Calecut, ao largo da                                                               da vitória de Cananor.
         costa de Cananor.                                                                     Assim aconteceu, por
           De acordo com as                                                                    exemplo, em Dabul,
         crónicas, eram onze                                                                   onde o vice-rei envia-
         os navios portugueses,                                                                ra a Armada da Índia,
         guarnecidos por cerca                                                                 para dar escolta a uns
         de oitocentos homens.                                                                 navios de Cochim e
         Os de Calecut tinham                                                                  Cananor, assediados
         “oytenta & quatro                                                                     por uma armada de
         naos grossas, & cento                                                                 Calecut. Os portugue-
         e vinte paraos gran-  Barra de Diu – D. João de Castro, Tábuas dos Roteiros da Índia.  ses deveriam proteger
         des em que avia mouros & Naires de pele-  No tempo da navegação à vela, os cami-  os seus aliados com a mesma energia com
         ja sem conto”, tomando como verdadeiro  nhos do mar eram definidos pelo regime de  que defenderiam os seus próprios navios,
         o relato de Castanheda. A batalha foi mui-  ventos e obrigavam ao respeito de épocas  mas o Conselho de D. Lourenço de Almei-
         to dura, mas a capacidade das bombardas  favoráveis à navegação e rotas muito pró-  da, reunido antes da batalha, teve uma opi-
         portuguesas foi suficiente para lograr uma  prias. Estas condições faziam com que de-  nião contrária. A barra era difícil, a despro-
         vitória que parecia impossível, trazendo um  terminados locais se tornassem particular-  porção de forças muito grande, a praça era
         especial ânimo aos portugueses. Foi, talvez,  mente importantes para o controlo das vias  muito forte e, certamente, iria dar apoio aos
         a primeira grande batalha naval do Índico,  de acesso, especialmente quando permitiam  inimigos, enfim, um série de argumentos
         entendida como um confronto entre forças  avistar os navios que se aproximavam (de  que o jovem capitão registou e fez assinar
         navais onde a acção concertada do fogo e  forma directa ou com patrulha marítima),  em acta, justificaram a retirada dos portu-
         manobra foi determinante para o resultado  oferecendo condições para lançar ataques  gueses com a perda dos seus aliados. Pouco
         final. Muitas embarcações inimigas deram à  em vantagem táctica. Foi isso que os portu-  importa aqui julgar a pusilanimidade dos
         costa perdidas de forma irrecuperável, con-  gueses procuraram em Angediva, um pon-  capitães ou a inexperiência de D. Louren-
         tando-se entre os despojos aprisionados por  to entre o Malabar e o Guzerate, sobre a rota  ço, que não conseguiu impor a vontade de
         D. Lourenço cerca de oito navios mouros car-  das naus de Meca, que demandavam o norte  combater. São julgamentos difíceis. O que
         regados de mercadoria e duas bandeiras do  ou que passavam em direcção ao Mar Ver-  ficou, no entanto, foi uma imagem de hesi-
         rei de Calecut, que levou a seu pai.  melho. Mas a posição, em si, não era sufi-  tação, ocorrida logo depois de Angediva, e
                                            ciente para garantir as condições de controlo  a que se acrescentou o facto dos navios do
         O PODER NAVAL                      marítimo. Necessitando, como disse, de dar  reino terem perdido a monção e não apare-
         E A BATALHA DECISIVA               abrigo aos navios e ter meios suficientes para  ceram nesse ano para carregar a especiaria,
                                            alimentar e fazer repousar as guarnições, não  causando algum desespero aqueles que ti-
           A batalha de Cananor podia ter sido um  tinha condições para isso, e fora uma má es-  nham abdicado do comércio tradicional para
         golpe decisivo nas forças do Samorim, se  colha, devendo ser abandonada e substituí-  fornecerem os portugueses.
         outros acontecimentos e circunstâncias não  da (Em 1510, viria a ser encontrado em Goa   Eu diria que os acontecimentos de 1507
         tivessem recuperado o seu ânimo e morali-  o porto necessário para este efeito). Contu-  deram alguma ousadia aos inimigos dos
         zado os seus aliados. É verdade que a esta-  do, o abandono depois de prolongado cer-  portugueses, e criou condições para que se
                                                                                      REVISTA DA ARMADA U MARÇO 2009  19
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