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que chegara de Lisboa, para castigar a afronta. ção estava no fim e, aos navios portugueses, co e com a perda de alguns navios, era algo
É importante observar este acontecimento, na não restava outra alternativa que invernar que prejudicava a imagem dos portugueses
medida em que revela os planos que o vice-rei em Cochim ou nas barras protegidas que na Índia. Assumia o ar de um recuo, apesar
tinha para aquele jovem destemido e ambicio- estivessem sob domínio português. Só em de ocorrer depois da devastadora vitória de
so, com pouca experiência enquanto capitão Setembro voltariam as condições para an- Cananor. Estas questões ganham uma certa
do mar e sem a escola de combate do Norte dar no mar, e nessa altura a prioridade era importância psicológica e pesam na capaci-
de África, mas cheio de vontade de triunfar socorrer a precária fortaleza de Angediva, dade de decisão dos inimigos, dando-lhes
na Índia. Mandou-o a Coulão, como coman- que fora cercada durante toda a monção de vontade redobrada de combater e prejudi-
dante da armada de desagravo da afronta sudoeste e estava em apuros. D. Francisco cando o domínio que Portugal pretendia ter
feita à feitoria, mas embarcou-o na nau do compreendera como era difícil manter aque- sobre o Mundo Índico. A contagem dos facto-
experiente João da Nova, e fê-lo acompanhar la posição e, quando lá enviou D. Lourenço, res que determinavam o Poder Naval capaz
dos veteranos capitães que com ele vieram deu-lhe instruções para desactivar a posição, de lograr este objectivo de D. Manuel tinha
do reino, conhecedores do Oriente e dos seus desmantelando todas as estruturas defen- de fazer-se contando com todos estes porme-
meandros. Naquele porto estavam 27 naus sivas. Angediva revelara-se um erro estra- nores: são os navios e a sua operacionalida-
de Calecut, responsáveis pelo ataque às ins- tégico que, apesar de corresponder a uma de, são as capacidades para os substituir, são
talações portuguesas (onde tinham morrido posição importante, aparentemente, com os pontos de apoio para os reparar e prote-
queimados o feitor e cerca de 12 homens), que controlo sobre a navegação entre o Malabar ger, são os locais a partir de onde podem ser
não imaginaram que os portugueses ousas- e o norte, não tinha abrigo suficiente para os lançados os ataques e é a moral e a vontade
sem atacá-los, dada a superioridade que sen- navios, nem meios próprios de subsistência dos combatentes. Há sempre um conjunto de
tiam ter. Enganaram-se, contudo, e perderam em caso de cerco ou quando a estação fosse circunstâncias, com componentes precários
todos os navios. D. Lourenço tinha assim um mais rigorosa. e dependentes do comportamento dos pró-
começo auspicioso de prios homens. A retira-
uma carreira em que da de Angediva podia
seu pai colocara todo ser apenas um por-
o seu empenho. Depois menor negativo, sem
desta acção, o vice-rei nenhuma importân-
nomeou-o capitão da cia e facilmente recu-
Armada da Índia, e foi perável, mas o ano de
nessa qualidade que 1507 teve mais acon-
viria a ter a sua pri- tecimentos negativos
meira grande batalha e, alguns deles, quase
naval, contra os navios apagaram a memória
de Calecut, ao largo da da vitória de Cananor.
costa de Cananor. Assim aconteceu, por
De acordo com as exemplo, em Dabul,
crónicas, eram onze onde o vice-rei envia-
os navios portugueses, ra a Armada da Índia,
guarnecidos por cerca para dar escolta a uns
de oitocentos homens. navios de Cochim e
Os de Calecut tinham Cananor, assediados
“oytenta & quatro por uma armada de
naos grossas, & cento Calecut. Os portugue-
e vinte paraos gran- Barra de Diu – D. João de Castro, Tábuas dos Roteiros da Índia. ses deveriam proteger
des em que avia mouros & Naires de pele- No tempo da navegação à vela, os cami- os seus aliados com a mesma energia com
ja sem conto”, tomando como verdadeiro nhos do mar eram definidos pelo regime de que defenderiam os seus próprios navios,
o relato de Castanheda. A batalha foi mui- ventos e obrigavam ao respeito de épocas mas o Conselho de D. Lourenço de Almei-
to dura, mas a capacidade das bombardas favoráveis à navegação e rotas muito pró- da, reunido antes da batalha, teve uma opi-
portuguesas foi suficiente para lograr uma prias. Estas condições faziam com que de- nião contrária. A barra era difícil, a despro-
vitória que parecia impossível, trazendo um terminados locais se tornassem particular- porção de forças muito grande, a praça era
especial ânimo aos portugueses. Foi, talvez, mente importantes para o controlo das vias muito forte e, certamente, iria dar apoio aos
a primeira grande batalha naval do Índico, de acesso, especialmente quando permitiam inimigos, enfim, um série de argumentos
entendida como um confronto entre forças avistar os navios que se aproximavam (de que o jovem capitão registou e fez assinar
navais onde a acção concertada do fogo e forma directa ou com patrulha marítima), em acta, justificaram a retirada dos portu-
manobra foi determinante para o resultado oferecendo condições para lançar ataques gueses com a perda dos seus aliados. Pouco
final. Muitas embarcações inimigas deram à em vantagem táctica. Foi isso que os portu- importa aqui julgar a pusilanimidade dos
costa perdidas de forma irrecuperável, con- gueses procuraram em Angediva, um pon- capitães ou a inexperiência de D. Louren-
tando-se entre os despojos aprisionados por to entre o Malabar e o Guzerate, sobre a rota ço, que não conseguiu impor a vontade de
D. Lourenço cerca de oito navios mouros car- das naus de Meca, que demandavam o norte combater. São julgamentos difíceis. O que
regados de mercadoria e duas bandeiras do ou que passavam em direcção ao Mar Ver- ficou, no entanto, foi uma imagem de hesi-
rei de Calecut, que levou a seu pai. melho. Mas a posição, em si, não era sufi- tação, ocorrida logo depois de Angediva, e
ciente para garantir as condições de controlo a que se acrescentou o facto dos navios do
O PODER NAVAL marítimo. Necessitando, como disse, de dar reino terem perdido a monção e não apare-
E A BATALHA DECISIVA abrigo aos navios e ter meios suficientes para ceram nesse ano para carregar a especiaria,
alimentar e fazer repousar as guarnições, não causando algum desespero aqueles que ti-
A batalha de Cananor podia ter sido um tinha condições para isso, e fora uma má es- nham abdicado do comércio tradicional para
golpe decisivo nas forças do Samorim, se colha, devendo ser abandonada e substituí- fornecerem os portugueses.
outros acontecimentos e circunstâncias não da (Em 1510, viria a ser encontrado em Goa Eu diria que os acontecimentos de 1507
tivessem recuperado o seu ânimo e morali- o porto necessário para este efeito). Contu- deram alguma ousadia aos inimigos dos
zado os seus aliados. É verdade que a esta- do, o abandono depois de prolongado cer- portugueses, e criou condições para que se
REVISTA DA ARMADA U MARÇO 2009 19