Page 9 - Revista da Armada
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exigente, mais arriscado, mais indispen- povo para além das vicissitudes sofridas Foto Júlio Titodispendiosas. Finalmente, as rotas árcticas
sável, identificar o eixo da roda do povo, da ao longo de séculos, que, entre mais reali- são avaliadas seriamente. A crise financeira
sociedade civil, da área cultural a que se dades, identifica a marinha de um povo, o e económica, que afectou o comércio mun-
pertence, sem escolha originária mas por nosso povo, que cedo viu no Mar a janela dial depois de 2008, também afectou bru-
pertença assumida, o tal eixo que acompa- da sua liberdade. A geração de Aviz não talmente a expansão do comércio marítimo,
nha a roda mas não anda. foi de desistentes, nem quando os erros de mas a retoma, logo que finda a recessão,
governo atingiram severamente todos os será inevitável. O Portugal que vai ser en-
Num mundo em mudança acelerada, valores da nacionalidade, mas não foram tregue à responsabilidade da vossa geração,
com uma internacionalização que derruba descendentes de desistentes os que conse- participa em todas as debilidades europeias
fronteiras, que enfraquece soberanias, que guiram a Restauração, não foram de desis- e ocidentais, e também, especificamente, do
conduz muitos Estados para a condição de tentes os que abriram a janela portuguesa passivo específico que herda da sua linha
exíguos, a decisão de ser ocidental, de ser do Império Euromundista em África. Não geracional de desistentes.
europeu, de ser cidadão do mundo, mas foi desistente o jovem Tenente Oliveira e
num lugar chamado Portugal, com iden- Carmo, que em Goa enfrentou a força des- Mas é a linha geracional dos que, em cada
tidade preservada, com dignidade sem medida do adversário, que teve presente o época, assumiram a realidade, definiram
ferida, com vontade colectiva sem que- lema que aprendeu nesta Escola – honrai a respostas estratégicas, alinharam os seus
bra, com cidadãos não desistentes, devo- Pátria, que a Pátria vos contempla – e só caiu valores, não desperdiçaram o tempo curto
tados ao serviço do interesse comum no de joelhos no altar dessa Pátria em que de- das suas vidas individuais, souberam orga-
exercício da virtude que Cícero chamara cidiu ficar, honrar, e pela qual aceitou mor- nizar a esperança e a alegria do futuro, que
a pietas, é ser fiel ao eixo da roda e ao futuro rer com honra. as instituições salvaguardam e desenvol-
para onde se encaminha a roda, sem que vem no tempo longo das suas vidas. É essa
o eixo se quebre e sem Nas instituições, como é o caso da Mari-
que se mova. nha, não se deve entrar com o espírito de linha geracional que há
quem vai passar um tempo de espera por séculos sabe que o Mar
Pelo fim do século pas- outras opções e destinos. Trata-se de as- é uma das janelas da li-
sado, o professor Adau- sumir uma ideia que dura para além das berdade portuguesa, que
to Novaes, falando dos gerações, que passa de mão em mão, de para além de todas as in-
desistentes, sem o dizer, desafio em desafio, de sacrifício em sacri- terdependências a que o
escreveu que “hoje a fe- fício, de honra em honra, e sempre saben- globalismo obriga as so-
licidade não é mais pen- do que o tempo breve de vida de cada um beranias, e por isso tam-
sada em termos de moral é um elo do tempo longo que vai traçando bém constrange a nossa,
antiga, mas em termos na história humana uma parcela do patri- o mar traz desafios que
de eficiência técnica, de mónio imaterial que finalmente é herança obrigam a esta conclu-
consumo. Mais ainda, e responsabilidade das gerações. são: se Portugal não for
ela depende cada vez decidido ao encontro do
mais da roda da Fortu- Nesta data, o Mar de tanta da história Mar, para enfrentar os
na, das forças exteriores, portuguesa e da história universal, vai tra- desafios que este suscita,
que tudo controlam e do- zer uma nova função, um novo desafio, e é o Mar que virá ao en-
minam”, o que por si só exige uma nova resposta para o globalismo contro de Portugal para
demonstra que, entre as sem governança em que vivemos. Abrem- impor as submissões que
duas concepções, existe -se novas vias marítimas para um modo outras sedes externas de
muito mais que simples de transporte que é a “coluna vertebral do poder, não apenas políti-
diferença: há uma verdadeira ruptura, uma comércio mundial”, nas quais transita 80% cas e de organização, mas também económi-
contradição. Este é o ponto mais crítico da do volume das suas mercadorias pelos oce- cas, lhe imporão. Foi sempre exacta, ao longo
moral moderna. É como se houvesse um anos. Para a Europa que dominou o mun- dos séculos, a divisa da Marinha que define
lento enfraquecimento da noção de ética e do, e agora é um espaço carente de maté- este imperativo: honrai a Pátria, que a Pátria
das conquistas do espírito com o acesso à rias-primas, de energias não renováveis, e vos contempla. Esta responsabilidade de não
técnica. Ou melhor, a moral passa a ter uma até de reservas estratégicas alimentares, a desistentes é aquela que assumem os que
importância quase convencional. dependência externa obriga a reavaliar o decidem entrar nesta instituição que há sé-
mar, a procurar novas formas de transpor- culos assegura o tempo longo de séculos da
Trata-se de um processo que talvez tenha, te e novas vias sempre mais curtas e menos Pátria, soma dos tempos breves de vida de
na histórica avaliação que Tocqueville fez cada um dos servidores que apenas cai de
da Democracia na América, uma primeira joelhos perante o altar dessa Pátria. Sempre
observação fundamental. Trata-se de que a recordarei o vosso ilustre antepassado, Bar-
evolução para a liberdade individual ten- tolomeu Dias, que por três vezes partiu em
deu para fazer do cidadão um homem ao busca da Índia, e nunca lá chegou, morrendo
mesmo tempo que livre também enfraque- no mar salgado pelas lágrimas de Portugal:
cido, porque lhe foram retirando dependên- mas nunca desistiu, e morreu tentando. Mas
cias institucionais, que são amparos em que morreu como vencedor: está na memória, no
se apoia a fidelidade aos valores: a Família, exemplo, e no património imaterial da Mari-
a Pátria, a Igreja, a história de um povo as- nha em que tendes a honra de entrar, assu-
sumida sem benefício de inventário, isto é, mindo o mandato que é o seu eixo da roda:
sem rejeitar os erros ao assumir as virtudes, amai a Pátria, que a Pátria vos contempla.
a consciência de que os laços imateriais de
comunhão tecem uma rede maleável mas Z
consistente que contribui para a força da
vontade de não aderir aos desistentes. Prof. Doutor Adriano Moreira
É justamente a ideia e realidade da insti- Presidente da Academia das Ciências de Lisboa
tuição, uma ideia de obra e de empresa que Presidente do Conselho Geral da Universidade
passa de mão em mão das gerações, com o
nome de tradição, que identifica uma Uni- Técnica de Lisboa
dade através dos séculos, que identifica um
Nota:
1 Elementos recolhidos cm L’État du Monde, 2010,
La Decouvcrt, Paris.
REVISTA DA ARMADA U MAIO 2010 9